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O SÍMBOLO DO CORAÇÃO  II

 

Sede para muitas tradições do valor, do ânimo (alma) e da Inteligência criadora, análogo no interior do ser humano ao Sol no macrocosmo, a luz e a vida nascem dele como de uma só fonte, a imagem da origem: "luz e vida, isso é o Deus e Pai (Noûs) de quem nasceu o Homem. Se aprendes, pois, a te conhecer como feito de vida e luz, e que são esses os elementos que te constituem, voltarás a nascer outra vez." (Poimandres, I-21).

Não se pode amar o que não se conhece, e nem todas as formas de união são um reflexo cabal do Amor.

Pequeno todo, já que é o centro do microcosmo, sintetiza o quaternário horizontal no eixo vertical e difunde na construção o Não-ser da mesma, sua identidade supracósmica, que ele reflete diretamente segundo o eixo vertical e a que o ser conhece através de seu próprio sacrifício (Olho do coração).

É a verdadeira Cidade divina, onde reside indubitavelmente o autêntico Sujeito incondicionado de todo Conhecimento; nele se acha o germe cujo desenvolvimento faz efetivos os planos que o diagrama da Árvore da Vida simboliza, pois é o verdadeiro atanor que absorve o inferior e manifesta o superior; já que não há manifestação sem centro, nem coisa alguma que careça de origem. O desenvolvimento deste embrião ou semente, através das diferentes fases da Obra, sempre alcança no coração uma atualização, uma realização ou nascimento, pois também há quatro leituras dele, do órgão físico até o santuário onde se produz a união do criado e o incriado. É a ara sacrifical e a oblação ou oferenda.

O Centro do Mundo é o banquete do Si mesmo do qual todos podem alimentar-se sem que se esgote, por isso foi simbolizado por uma Mesa em que se sentam os deuses e os homens, seja na celebração de um céu regenerado (Giordano Bruno: Expulsão da Besta Triunfante), ou na de um matrimônio hierogâmico (as Bodas de Cadmo e Harmonia, quando para a tradição grega aqueles compartilharam o ágape pela última vez com os humanos); ou pela Távola Redonda, em cujo centro se acha o Graal, ou a Mesa de Salomão na Toledo hermética do Século XII, segundo a lenda, coalhada de pedras preciosas que simbolizam o Zodíaco.

Também é a terra pura, uma vez dissolvida a ignorância que por degradação cíclica cobre o lugar das hierofanias, que sempre se dão no "centro do mundo", inaugurando, se for necessário, um espaço ou um tempo ao qual outorgam essa característica.

Este coração, que é o receptáculo do vertical-espiritual, cuja influência irradia no horizontal, exercendo assim de intermediário através de seu vazio central, que o Éter simboliza, é também o receptáculo guardado no sacrário do templo, construção análoga a este, cuja tampa corresponde à abóbada ou telhado, e que contém o alimento ou licor de imortalidade, fruto do atanor ao qual se chegou através do vazio, realidade efetiva de um estado do ser que transcende à construção, e que pode ser conhecido na abertura do "sentido de eternidade" e seu desenvolvimento total, embora a individualidade do homem esteja crucificada no quaternário.

Por seu simbolismo concêntrico, correspondente deste modo à síntese perfeita da Criação, em seu interior se acha a Presença ou Imanência divina, que é o verdadeiro Centro de todas as coisas e que as contém, a todas, sem ser contido por elas: este é assim o autêntico Mestre, com o qual se identifica o iniciado conforme progride na realização de seu verdadeiro Ser.

 
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OS CICLOS  I

 

Como dissemos no título N.º 2 deste Módulo III, um Kalpa representa o ciclo de existência de um universo ou mundo, nascido do hálito de Brahma, a Deidade criadora. Não há um ciclo mais extenso que o Kalpa, pois ele contém todos os ciclos de ciclos possíveis, unidos entre si por esse hálito que os sustenta e lhes dá a vida. Acrescentaremos que, quando um Kalpa chega a seu fim, produz-se um Pralaya, a dissolução ou reabsorção desse mundo no seio de Brahma, no imanifestado. A este respeito, lemos no Bhagavad-Gita, livro sagrado da Índia: "Ao fim de um Kalpa, de um período de criadora atividade, os seres e as coisas voltam para Mim". O Kalpa é um dia de Brahma, e o Pralaya uma noite que, ao finalizar-se, aparece um novo Kalpa, e assim de maneira indefinida, conformando o que se chama a "cadeia dos mundos". Cada Kalpa contém 14 Manvântaras, e cada Manvântara representa o ciclo completo de uma humanidade, que por sua vez se subdivide em quatro yugas ou idades de desigual duração cada uma delas. Nosso Manvântara é o sétimo dessa série, e ainda faltariam outros sete para que finalize o Kalpa atual. Dizer, enfim, que a palavra Manvântara significa "era de Manu", que é o Legislador universal ou Inteligência cósmica que promulga, de acordo com a Sabedoria Eterna, a Lei ou Dharma que rege todo o Manvântara desde seu princípio até seu fim.

Diz-se que o Dharma, simbolizado por um touro na tradição hindu, apóia-se com suas quatro patas durante o Satya-Yuga ou Idade de Ouro, o que quer dizer que se manifesta em sua totalidade, significando com isso que a humanidade em seu conjunto vivia em perfeita harmonia e unidade com seu Princípio. Recordemos neste sentido que Satya-Yuga quer dizer "Idade do Ser", ou "Idade da Verdade". A mesma raiz Sat a encontramos em Saturno, o regente da Idade de Ouro na tradição grego-latina. Por analogia entre a ordem metafísica e a corporal, esse mesmo sentido de totalidade se expressa na duração temporal desse Yuga, avaliada como sabemos em 25.920 anos, que é um período inteiro da precessão dos equinócios ou, o que é o mesmo, 12 "eras zodiacais" de 2.160 anos cada uma (12 x 2.160 = 25.920). Pelo contrário durante o Treta-Yuga, ou Idade de Prata, a instabilidade e o paulatino obscurecimento espiritual penetram no mundo, pois o touro do Dharma se sustenta com três patas (Treta = três). Isto se traduz em um encurtamento da duração dessa Idade: 19.440 anos, quer dizer, três quartos da precessão dos equinócios ou, o que é igual, 9 "eras zodiacais" (9 x 2.160 = 19.440). No Dvapara-Yuga ou Idade de Bronze, o touro se apóia tão somente com duas patas (Dvapara = dois), dando a entender que o Dharma é compreendido unicamente em sua metade. Precisamente a essa Idade corresponde uma duração que é a metade da precessão dos equinócios: 12.960 anos, ou 6 "eras zodiacais" (6 x 2.160 = 12.960). E finalmente, no Kali-Yuga ou Idade de Ferro, o touro do Dharma se sustenta com um só pé, simbolizando assim o grande desequilíbrio que distingue a última idade do Manvântara, e muito especialmente às últimas fases deste. A duração desta Idade é de um quarto da precessão dos equinócios: 6.480 anos, ou 3 "eras zodiacais" (3 x 2.160 = 6.480). Kali-yuga quer dizer "Idade Sombria", que começou faz mais de seis mil anos, com o que está a ponto de chegar a seu fim, e com ela a de todo o Manvântara. Segundo os dados da Ciência Sagrada esta Idade começou com a entrada na "era zodiacal" de Touro, ao redor do ano 4.450 A. C.

 
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O FIM DOS TEMPOS

 

Qualquer observador neutro pode comprovar na atualidade certos sintomas mundiais como terremotos, secas, pestes, guerras, catástrofes, degeneração social, superpopulação, violências e injustiças, em uma proporção jamais conhecida pela humanidade. Estes claros sintomas do fim de um ciclo anunciados pelas escrituras judaico-cristãs até em seus detalhes, também foram expostos pelas tradições hindu, budista, islâmica, pré-colombiana, greco-romana, hermética, etc., em abundantíssimos documentos.

Parece que todos estes acidentes se resolverão pelo fogo –por um raio misericordioso– e que este elemento permitirá a regeneração desta humanidade que perecerá totalmente e se reintegrará à névoa de onde proveio, para dar lugar a outra, nascida de suas cinzas e gérmens, que fará renascer um mundo novo e uma Idade de Ouro, graças aos esforços –e o sangue– de iniciados e adeptos, que possibilitarão a continuidade da criação. Certamente que a ignorância contemporânea despreza no público e oficial este fato, que nega e desconhece –as escrituras dizem que os homens serão colhidos de maneira imprevista, efetuando seus negócios e mentiras– embora no privado alguns se sensibilizem, ainda que tendam às imagens literais e físicas e muitos, inclusive, planejam "salvar-se" em uma espécie de Arca do Noé material.

Esta última "ingenuidade", ou melhor, ilusão, é tão grave como a outra, e os que "acreditam" nela –quando se diz que não só haverá uma nova terra, mas também um novo céu– serão igualmente excluídos do mundo futuro.

A morte de uma civilização é análoga a do ser individual e este nada poderá levar de material ao outro mundo. Entretanto, o homem ressuscitará em um corpo de glória se for capaz de aceder ao Conhecimento, ao Ser, e reabsorver-se no Tempo para ganhar a Eternidade, o que constitui a verdadeira espiritualidade que o iniciado pretende em vida. E sem dúvida, este corpo glorioso, ou melhor, esta "entidade", pode se realizar deste modo de maneira grupal.

Por outra parte, deve se recordar que, na infinita harmonia de todas as coisas, aonde tudo está contado, pesado e medido, o fim de um ciclo e seus habitantes está em íntima relação com o começo de outro e o nascimento de uma nova humanidade, que nada tem que ver com esta, a qual, é óbvio, não pode subsistir pela própria dinâmica de sua multiplicação.

 
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MARSÍLIO FICINO

 

Quando em 1450 Cosme de Médici confia ao ainda muito jovem Marsílio Ficino (1433-1499) a criação da Academia Platônica de Florença, estava-se dando um passo fundamental para o que ia ser um novo ressurgimento da Tradição Hermética, depois do relativo obscurecimento acontecido do final do Idade Média. Para encontrar as causas que fizeram possível a realidade desta Academia (convertida no centro intelectual mais importante da época), devemos retroceder até o ano 1439 em que, com objetivo de celebrar um congresso de filosofia, vão a Florença sábios procedentes de diversos países e religiões, entre os quais se acham também os filósofos neoplatônicos bizantinos. Estes últimos trazem consigo todo o saber hermético e platônico conservado intacto na cidade de Bizâncio (anteriormente Constantinopla) dos tempos alexandrinos, e que só em parte tinha sido difundido pelo Ocidente Medieval. Entre esses filósofos é Gemisto Pleto o que mais direta influência exercerá sobre a Academia Platônica, pois por sua mediação Marsílio Ficino e seu círculo esotérico traduzirão do grego todos os livros do Corpus Hermeticum (na Idade Média unicamente foi conhecido o Asclépios em versão latina), os "Oráculos Caldeus", e as obras de Platão, Proclo, Jâmblico, Plotino, Dionísio Areopagita, Porfírio, Sinésio, para só citar uns quantos. Deve ser destacado que, para Ficino, traduzir é sobretudo uma forma de transmitir a tradição, tendo em conta além que estas três palavras –traduzir, transmitir e tradição– equivalem a uma mesma realidade, já que todas elas procedem de idêntica raiz etimológica. Neste sentido, convém recordar que o mesmo conhecimento simbólico transmitido pelas culturas tradicionais é uma tradução à linguagem e entendimento humanos das verdades e arquétipos eternos. Assim, traduzindo, comentando e prefaciando as obras da antiga sabedoria, Ficino se converte em um fiel intérprete dela. No prólogo que fez ao Poimandres, Ficino estabelece a genealogia mítica e espiritual que, como uma cadeia de ouro, a "cadeia áurea", unifica acima do tempo e do espaço a ilustre família dos filósofos herméticos, "...cuja origem está em Mercúrio e o apogeu em Platão". Retenhamos um parágrafo de dito prólogo: "No tempo em que nasceu Moisés, florescia o astrônomo Atlas, irmão do físico Prometeu (filiação esta que sem dúvida se refere à origem única do céu e a terra), avô materno do antigo Mercúrio, cujo neto foi Mercúrio Trismegisto, o maior dos sacerdotes e reis". A este rei-pontífice se lhe deve a instrução "de Orfeu, quem revelou os mistérios a Aglaofemo, sucedido por Pitágoras, que teve como discípulo a Filolau, mestre de Platão". Considerando-se a si mesmo como um elo a mais dessa cadeia, Ficino produzirá uma obra própria, que perpetuará a memória da "raça divina e heróica", "proprietária dos séculos", adaptando-a às circunstâncias de seu tempo.

Pelo profundo rastro que deixaram na arte e na filosofia hermética do Renascimento, merecem destacar-se dessa obra a Teologia Platônica e Da Religião Cristã, nas quais se manifesta a universalidade de um pensamento, que foi capaz de combinar os mistérios da cosmologia e da metafísica platônicas com os da revelação cristã, síntese anunciada já pelos primeiros Pais da Igreja e seus sucessores medievais, e deste modo por Nicolau de Cusa (1401-1464), o doutor da douta ignorantia, que tão grande influencia exerceria sobre o próprio Ficino e seu discípulo Pico de la Mirândola, e através deles em todos os neoplatônicos renascentistas. Por outro lado, o esoterismo impulsionado por Ficino pode ser visto como uma reação contra o "escolasticismo" aristotélico, que em sua degradação estava incubando os gérmens do que, séculos mais tarde, daria lugar ao racionalismo cartesiano.

Ao dizer de seu discípulo Policiano, Ficino foi "um novo Orfeu que resgatou dos infernos a Eurídice platônica". Com efeito, o eixo ao redor do qual se edificou dita obra foram os hinos órficos, nos quais o mestre descobre, velados sob a linguagem evocadora da poesia, os mais altos segredos, pois conforme afirmou Dionísio Areopagita, "o raio divino não pode nos alcançar a menos que esteja coberto de véus poéticos". Esses véus são os próprios deuses, ou melhor, as emanações que estes manifestam ao homem por mediação das musas mensageiras –filhas de Zeus e da Memória– e pelas Graças. Ficino, tal qual Pico de la Mirândola, mantinha que os deuses do panteão órfico eram deuses "compostos" ou "híbridos", investidos do poder da mutabilidade, adquirindo com isso todas as formas. Mas essa mutabilidade é possível pelo auto-sacrifício do Ser que, ao se fragmentar e se dividir, dá lugar à ordem cosmogônica, regida pelos mesmos deuses. Por outro lado, que um deus contenha o seu contrário, ou que necessite de seu oposto para expressar a totalidade de seus atributos, não resulta para nada estranho a um mago renascentista como Ficino, para quem o universo é uma estrutura tecida pelas constantes relações, tensões e lutas entre energias opostas que, entretanto, perpetuamente se equilibram e harmonizam, atraídas pela força do Amor, inseparável da Beleza, a porta por onde se acede à identidade com o Conhecimento e a Sabedoria.

Em seu tratado De Amore (comentário ao Simposio do Platão), Ficino deixou escrito: "Todos os deuses estão ligados uns aos outros por uma espécie de caridade mútua, de tal maneira que se pode dizer com justiça que o amor é nó e vínculo permanente do universo". Note-se como se corresponde esta concepção com o exposto pela doutrina cabalística, pois é em Tifereth (o Amor ou Beleza), como coração axial da Árvore da Vida, onde acham seu equilíbrio todas as oposições sefiróticas. Na mesma ordem de idéias, haveria que se ver o quê a respeito diz o próprio cristianismo, para o qual a caridade, ou amor, está situada na cúspide das virtudes teologais, que por serem tais pertencem ao domínio da ontologia, acima da qual só se encontra a metafísica. Não é casual, pois, que entre os neoplatônicos renascentistas subsistisse uma secreta filiação que entroncava com o ensino iniciático dos "Fiéis de Amor medievais". Além disso, representar cega ou com os olhos enfaixados a deidade do amor (por exemplo, o Cupido de "A Primavera" de Botticelli, pintor integrado no círculo do Ficino) era uma forma de exemplificar que os mais elevados mistérios, ocultos nas "trevas mais que luminosas do Ser", não se podem apreender apenas pelos sentidos corporais, mas sim por meio da alma purificada, recolhida em si mesma no arrebatamento do êxtase amoroso que antecede à união com o inefável.

 
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A TRADIÇÃO HERMÉTICA

 

No título N.º 20 deste Módulo aludimos à origem antediluviana e atlante da Tradição Hermética, recolhendo o que a este respeito se menciona em certas lendas a respeito da existência de um mítico "Hermes de Hermes" que viveu "antes do Dilúvio". Essas mesmas lendas referem que desse Hermes Arquetípico nascem o "Hermes caldeu" e o "Hermes egípcio", quer dizer, as duas grandes civilizações que dentro do Kali-Yuga, e junto às pré-colombianas, contam-se entre as herdeiras mais importantes da Tradição Atlante, em que residia um poder espiritual diretamente emanado do Centro Supremo ou Tradição Primordial. O Hermes egípcio não é outro que Thot, o escriba divino e depositário da Ciência Sagrada, aquele que é chamado "Senhor da Sabedoria", "o Misterioso" e "o Desconhecido", mas ao mesmo tempo intermediário entre o Céu e a Terra, pois "sem seu conhecimento, nada pode ser feito entre os deuses e os homens".

Essa função intermediária passará a formar parte do Hermes grego e do Mercúrio romano, o Deus que encontramos nas encruzilhadas da vida e nos guia pelo caminho do Conhecimento. Ambos, como sabemos, são representados com asas na cabeça e nos pés, testemunhando assim essa natureza intermediária e aérea, que une o inferior ao superior, e levando além disso o caduceu como insígnia de sua função axial, e com o qual realiza o vínculo e a união entre os três mundos ou planos da Existência universal, presentes também no microcosmo humano. Thot-Hermes-Mercúrio conhece, pois, "tudo o que está oculto sob a abóbada celeste e nas vísceras da terra", ou seja, a totalidade dos mistérios do Cosmo, e doa esse conhecimento a sua estirpe (a quem se liga com seu influxo espiritual) mediante a revelação de um código simbólico que se cristaliza nas distintas artes e ciências da Cosmogonia (que deram forma à cultura e à civilização do Ocidente), incluindo os livros sagrados e sapienciais inspirados diretamente pelo próprio Hermes, como é o caso dos que compõem o Corpus Hermeticum, sem nos esquecer de todos aqueles que nos foram legados pelos adeptos e mestres desta Tradição, que continua estando tão viva e atual como o esteve desde suas origens.

Do Corpus Hermeticum queremos extrair os seguintes fragmentos:

"Detei-vos e recuperai a sobriedade! Olhai ao alto com os olhos do coração –senão todos, ao menos aqueles que sejam capazes. O mal da ignorância alaga toda a terra e acaba por corromper à alma aprisionada no corpo, impedindo-lhe de atracar no porto da salvação. Não vos deixeis arrastar por esta enorme corrente, aproveitar a vazante, os que possais, e atraqueis no porto da salvação. Procurai então um guia que vos colha da mão e vos conduza até as ante-portas do Conhecimento. Ali brilha a luz, limpa de toda obscuridão. Ali ninguém está embriagado. Todo mundo está sóbrio e observa com o coração aquele que deseja ser visto, que não se deixa ouvir nem descrever, que não pode ser visto com os olhos senão com a mente e com o coração. Mas primeiro deveis lhes arrancar a túnica que levam posta, o vestido da ignorância, o fundamento do mal, a cadeia da corrupção, a cela tenebrosa, a morte vivente, o cadáver sensível, a tumba que levam de um lado a outro, o ladrão que habita em vós, que odeia através do que ama e sente inveja através do que odeia". Poimandres, VII, 1-2.

"Tal vai ser a velhice do mundo: falta de piedade, desordem, desprezo por todo o bom. Quando tudo isto aconteça, Asclépio, então, o Senhor e Pai, o deus cujo poder é soberano, governador do primeiro deus, contemplará esta conduta e estes crimes insensatos e por um ato de sua vontade –que é a benevolência de deus–, enfrentar-se-á com os vícios e a perversão de todas as coisas, endireitará os enganos, purificará a maldade com um dilúvio ou consumindo-a em chamas, ou acabará com ela difundindo por toda parte enfermidades pestilentas. Então restituirá o mundo a sua beleza antiga, de tal modo que o próprio mundo voltará a parecer que merece maravilha e culto, e, com constantes bênções e cerimônias de louvor, a gente destes tempos honrará ao deus capaz de fazer e restaurar uma obra tão grande. E esta será a gênese do mundo: uma reforma de todas as coisas boas e uma restituição muito sagrada e piedosa da mesma natureza, reordenada no curso do tempo...". Asclépio, XXVI.

 
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OS SIGNOS DA RENÚNCIA

 

Às vezes este universo se torna muito pequeno, quase como um brinquedo ou um teatro de marionetes, uma ilusão por cuja realidade, apenas, alguém apostaria se não fosse porque de momento se encontra dentro, vivendo e sofrendo em e com ele constantemente. Pois separado de seu sentido simbólico e teofânico, só é um multicolorido cenário de fenômenos, além do qual começa o que é verdadeiramente ilimitado e real. Se algo nos "salva" precisamente deste mundo, permitindo-nos vivê-lo-o mais harmoniosamente possível, não é ele mesmo ou as coisas que nele existem, mas sim a compreensão do que o excede e transcende. E só é a fé, nascida da intuição direta, que nos permite seguir e compreender a ignorância de nossas dúvidas. E quando dizemos "mundo", referimo-nos também aos dez mil seres que o povoam, sendo estes uma prolongação sua microcósmica e transitória, assim como seus afetos, paixões, instintos, ambições e desejos. Prisioneiro de uma limitada visão de sua existência, dificilmente o homem concebe a idéia de transpassar a soleira que o separa do "além", tanto como de superar o sofrimento que implica perder tudo aquilo que ama e que deseja reter. Para uma cultura que não concebe outra realidade que a material, a morte e o sofrimento, tanto como a própria vida, são um absurdo completo, uma interrogação para a qual não há mais resposta que o encolhimento de ombros, ou as mais desatinadas suposições. É uma visão sem esperança nem consolo, que termina por fomentar um ódio instintivo e destruidor contra tudo, contra o próprio mundo, produzindo niilismo e ceticismo.

A impermanência das coisas, a irrealidade do mundo, é que faz intuir desde o começo a Sidhartha (o futuro Buddha Gautama Sakyamuni), a Liberação ou a União (Yoga) com a única e verdadeira Realidade Imutável. E é esta a mensagem básica do budismo, tanto quanto do cristianismo, pregando ambos a renúncia aos bens ou desditas passageiras deste mundo, a sua ilusória realidade. Com efeito, nas três primeiras viagens fora do recinto de palácio, aonde o tem resguardado seu pai, Sidhartha contempla pela primeira vez a enfermidade, a velhice e a morte. Sua visão confirma suas intuições: tudo é sofrimento porque toda ação desejosa de "resultados" fixos produz uma fricção que desgasta. Tudo é um contínuo desgaste ou esgotamento, que se renova para seguir se desgastando. A única escapatória desta roda inexorável (Samsara) é a não-ação, ou a renúncia a seus frutos e à "recompensa". E como sua marcha exterior não pode parar, pois segue pautas cíclicas de causa-efeito invariáveis, é só pela via interna que pode ser efetuada esta saída (pois o centro sempre reside no interior das coisas), sendo sua realidade imutável, não afetada pelas mudanças contínuas da periferia.

Podemos ver que nas circunstâncias cíclicas em que vivemos, esta doutrina é uma autêntica medicina, um consolo para a alma que hoje, mais que nunca, intui-se afastada de sua verdadeira pátria, exilada neste "vale de lágrimas". Com efeito, o desejo e a paixão são os verdadeiros motores da ação (karma), os quais jamais podem se ver satisfeitos pois a ação, por si mesma, jamais conduz ao repouso, mas sim gera indefinidamente ações e reações secundárias. Acabar com os desejos e paixões, mediante o conhecimento da Cosmogonia como suporte do ser e passagem à metafísica, é deixar de atirar lenha ao fogo e, portanto, liberar-se da contínua necessidade de fazer ou de ter.

 
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O ATRAVESSAR AS ÁGUAS

 

"No princípio, criou Deus os céus e a terra. A terra estava sem forma e vazia e as trevas cobriam a face do abismo, mas o espírito de Deus pairava sobre a superfície das águas. Disse Deus: ‘Haja luz’; e houve luz. E viu Deus ser boa a luz, e a separou das trevas; e à luz chamou dia e às trevas noite, e houve tarde e manhã, primeiro dia.

"Disse em seguida Deus: 'Haja firmamento em meio das águas, que separe umas das outras' e assim foi. E fez Deus o firmamento, separando águas de águas, as que estavam debaixo do firmamento das que estavam sobre o firmamento. E viu Deus ser bom. Chamou Deus ao firmamento céu, e houve tarde e manhã, segundo dia." (Gênese I, 1-8).

O percurso da alma para os estados mais internos e sutis do ser, é representado por várias tradições como uma "passagem" através das águas. O iniciado deve atravessar as águas inferiores de seu psiquismo individual procurando a chegada às águas superiores que se acham sobre o firmamento.

Entre os antigos egípcios o percurso que faz a alma uma vez que se libera de sua morada terrestre é representado ritualmente como uma viagem que se efetua em uma barca, cruzando as águas. Entretanto, é importante recalcar que, para que esta se realize, não é necessária a morte física, pois a morte iniciática faz que o adepto obtenha uma verdadeira separação de sua circunstância individual e de seu corpo carnal e possa empreender em vida esta viagem através das águas para sua morada eterna.

O modo como se simboliza essa passagem é variada:

a) Algumas vezes se olha como uma viagem da fonte do rio até o mar, em cujo caso o oceano representa as águas superiores, sendo a desembocadura como uma "boca" ou uma "porta" pela qual se passará do cósmico ao supracósmico.
b) Outra forma de visualizar é como o cruzamento de uma margem a outra do rio, o que se expressa com o símbolo da ponte que une suas duas margens opostas. Neste caso, cada margem simboliza um grau diverso do ser, correspondendo uma à terra e à morte e outra ao céu e à imortalidade. Este símbolo –que também se relaciona com o arco-íris–, representa aquela entidade intermediária que permite que as energias celestes desçam ao mundo terrestre e que a terra se comunique com o céu. A ponte é um lugar de passagem, de provas e perigos, e o atravessá-la constitui no passar da terra ao céu. Inversamente essa "passagem" já foi realizada por cada um dos seres individuais que, provindo de um Princípio único, devieram em criaturas manifestadas; e o verdadeiro trabalho do homem tem que ser –segundo a Tradição– a de reencontrar ou "recordar" o caminho de retorno que o leve a sua origem, atravessando essa ponte invisível que une estados simultâneos do ser. A palavra pontifex (pontífice), significa "construtor de pontes", e de fato o próprio Papa ou Hierofante (ver o número 5 dos Arcanos Maiores do Tarô), sendo um mediador que conecta o divino e o humano, é ele mesmo, portanto, uma verdadeira ponte que comunica o homem com sua realidade espiritual. Diz-se que essa ponte é estreita e –como no simbolismo da porta– que permite a passagem só aos "eleitos", únicos capazes de obter a identidade real com os estados mais sutis do Si Mesmo.
c) Outra forma de representar esse passar através das águas, é mediante o símbolo de remontar o rio até sua fonte original, navegando contra a corrente. Neste caso o oceano de onde se parte significa as águas inferiores; a corrente, contra a qual tem que realizar o percurso, são as forças que tratam de impedir a ascensão; e a fonte é a origem e o destino –a identidade imutável– do ser verdadeiro e eterno.

Por último, é interessante fazer notar que em todos estes simbolismos do atravessar as águas se aponta a necessidade de um passar pela morte que as próprias águas simbolizam.

"É propício atravessar as grandes águas". "É propício ver o Grande Homem". (I Ching).

 
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A INICIAÇÃO

 

Queremos abordar novamente o tema da Iniciação e sua possibilidade real e devem ser feitas algumas considerações.

Em primeiro lugar, deve-se esclarecer que a Iniciação verdadeira é um processo íntimo, secreto, onde o homem troca o conteúdo de suas imagens mentais através da reforma total de sua psique e portanto inclui uma morte ao mundo conceitual profano, que é uma reconversão do ser e, desta forma, vem seguida de um novo nascimento a um estado diferente. Também se assinalou que há duas destas mortes e portanto três nascimentos, dois iniciáticos e o profano, e estes nascimentos são perfeitamente efetivos e reais, claramente indicados por ciclos e sinais, para quem participa deles.

A via é a Simbólica, como ciência das correspondências e das analogias, e dos ciclos, ritmos, freqüências e cadências em que estes símbolos se manifestam no ser e seu entorno. Ou seja a via do Conhecimento, apoiada por práticas físicas e comprovações psicológicas como suportes do Ser e sua verdadeira realização Metafísica: em suma, a busca e efetivação do terceiro nascimento, quer dizer, o ingresso aos Mistérios maiores. Para isso, o Programa conta com os elementos invisíveis –energias espirituais– que exteriorizados em modo de lições permitem represar o percurso iniciático do Adepto. Estes elementos tomam a forma da Tradição Hermética, por um lado, por outro a comparação da mensagem desta Tradição –e as experiências vitais que o estudo e a imersão nela trazem emparelhados– com outras manifestações tradicionais –religiosas ou não–, que conformam a Tradição Original, Universal e Unânime.

 
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A TÁBUA DE ESMERALDA

 

A esta altura de nosso Programa, faz-se quase imprescindível publicar o texto do mais importante documento Hermético. Trata-se da Tábua de Esmeralda, legado do mítico e arquetípico Hermes Trismegisto, diretamente vinculado com a Tradição Egípcia:

1.
"É verdade, sem mentira, certo e o mais verdadeiro: O que está embaixo é como o que está encima, e o que está encima é como o que está embaixo, para que se operem os milagres de uma só coisa."
2.
"Assim como todas as coisas procedem do Um, pela contemplação do Um, assim todas as coisas resultam desta coisa única por adaptação."
3.
"Seu pai é o Sol, sua mãe é a Lua, o vento o levou em seu ventre, sua nutriz é a Terra."
4.
"É o pai de toda maravilha no mundo inteiro."
5.
"Seu poder é perfeito quando se converte em Terra."
6.
"Separa a Terra do Fogo, e o sutil do grosseiro, suavemente e com todo cuidado."
7.
"Sobe da Terra ao Céu, desce de novo à Terra, e une os poderes das coisas de cima e das de baixo. Deste modo possuirá a glória do mundo inteiro e toda obscuridade se afastará de ti."
8.
"Este é o poder de todo poder, pois vence tudo o que é sutil e penetra tudo o que é sólido."
9.
"Desta maneira foi criado o mundo."
10.
"Por isso, operar-se-ão assim adaptações prodigiosas, cujos meios se acham aqui estabelecidos."
11.
"Por isso sou chamado Hermes Trismegisto, pois possuo as três partes da Filosofia do mundo inteiro."
12.
"Terminado e completo está o que disse com respeito à obra do Sol."
 

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