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A ESCALA

 

Quando Jacob fugia de seu irmão Esaú, detendo-se para passar a noite, tomou uma pedra que pôs de cabeceira:

“E teve um sonho; sonhou com uma escada apoiada na terra, e cujo topo tocava os céus, e eis aqui que os anjos de Deus subiam e desciam por ela. E viu que Yahveh estava sobre ela...” (Gênese, XXVIII, 12).

Pela escala, simbolicamente, sobem e descem as energias da criação, pois esta é como uma ponte vertical que comunica a terra com o céu, o material com o espiritual. Por ela as energias sutis e invisíveis descem aos homens, que por sua vez têm a possibilidade de subir por seus degraus para a pátria celeste.

No processo iniciático este símbolo tem o duplo papel tanto no processo de “descer” como no de “subir”. A descida aos infernos, ou visita ao interior da terra, que se tem que produzir na primeira etapa da iniciação, é às vezes representada como uma escala que conduz ao subsolo; por outra parte, os deuses, enviados ou energias celestes que visitam a terra, descem por uma escala misteriosa. Mas, em geral, seu significado é mais ascendente, representando a elevação escalonada da consciência no caminho do conhecimento.

Há uma similaridade e complementaridade entre o simbolismo da escala e o da porta, já que ambas indicam uma “passagem” a outros estados, e a primeira, em muitos casos, precede à segunda. Tal é o caso do simbolismo do templo cristão: primeiro se vêem os degraus entre o átrio e a porta exterior; em seguida, estão de novo antes da chegada ao altar; e finalmente, a mais importante é a escala invisível que comunica o altar com a cúpula, em cujo centro se acha a porta estreita à qual já nos referimos. Por outra parte, também na arte cristã se vê freqüentemente a relação da escala com a árvore e de ambos com a cruz, todos símbolos axiais cuja função consiste em enlaçar o de cima e o de baixo. A verdadeira escala está plantada no centro do mundo, e, como sabemos, qualquer espaço sagrado pode representar esse centro. Entretanto, todas as idéias de centro nos devem conduzir a nossa própria interioridade, que é de onde tem que sair a escala que nos permitirá aceder –quando chegarmos a seu topo– ao mundo dos deuses.

Também se relaciona este símbolo com o da espiral –o que é notável na escada em “caracol”–, pois ambos se referem às hierarquias da existência, os níveis do Conhecimento e os graus de leitura da realidade. Cada um de seus degraus representa um distinto “céu”, um estado do ser; e o escalá-los indica a ascensão gradual da alma que busca a fusão com o espírito único.

No simbolismo construtivo a escala é por um lado um instrumento de trabalho (escada) e pelo outro forma parte integral da própria construção (degraus). A própria estrutura da pirâmide, por exemplo, fala-nos da escalonada subida para o centro do ser; e é interessante também a relação desta com a montanha, que em determinados casos se escala ritualmente e cuja ascensão tem o mesmo significado.

O número de degraus ou degraus da escala é importante e varia segundo o que esteja simbolizando. As mais comuns são as de três e sete degraus; embora as encontra também freqüentemente em número de nove, dez, doze, trinta e trinta e três, etc. A de três degraus se relaciona em geral com os três graus (de aprendiz, companheiro e mestre) da iniciação. A de sete também tem esse sentido, quando –como no caso do simbolismo dos sete chakras– os graus são nesse número. Esta última é claramente visível na escala musical, que por sua vez se encontra ligada com a dos planetas, a dos metais, a das cores –o arco íris é às vezes representado como uma escala– e os sete dias da semana, símbolos todos que nos falam da ascensão progressiva pelos sete “céus” planetários –que as sete artes liberais e as próprias sefiroth exemplificam– que temos que visitar em nossos percursos iniciáticos e cuja realização sempre suporá uma expansão gradual da consciência.

No corpo humano, o simbolismo natural que mais claramente se relaciona com a escala é o das trinta e três vértebras que compõem a coluna vertebral, eixo axial que lhe dá o ponto de equilíbrio; embora também a divisão simples do corpo em cabeça, tronco e extremidades, tem um sentido escalonado e hierárquico.

Com efeito, o símbolo da escala nos ensina que a criação é hierarquizada, que essas hierarquias são na verdade internas, e que temos que as conhecer, as escalando dentro de nós mesmos, para despertar e conhecer nossas verdadeiras possibilidades espirituais.

A palavra escala tem uma relação também com a idéia de “proporção”, e nesse sentido pode se ver o ser humano como criado “à escala” do universo. Com efeito, o homem tem limites pois seus sentidos unicamente lhe permitem perceber uma determinada escala da realidade (não vêem nossos olhos as cores infravermelhas nem as ultravioletas; nem percebemos a olho-nu os planetas mais afastados de Saturno; nem escutam nossos ouvidos as escalas musicais mais baixas e mais altas). Entretanto, primeiro o reconhecimento desses limites, e logo a ascensão escalonada pelos graus do ser, permitir-nos-ão chegar ao ilimitado, onde a idéia de hierarquia perde realidade e só reina a igualdade pura da essência.

 
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A TRADIÇÃO PRÉ-COLOMBIANA

 

Em finais do século XV e no XVI, os europeus “descobriram” a América. Entretanto, a Tradição Pré-colombiana existia há muito e era conhecida essa existência pela antigüidade segundo testemunho de Platão, que, falando da Atlântida, continente-ilha desaparecido por uma catástrofe, diz-nos que suas colônias se achavam pulverizadas pelo ocidente em pequenas ilhas, arquipélagos e terra firme. Do mesmo modo, outras das colônias deste continente se achavam na África e na Europa e delas são herdeiros nada menos que o Egito (e por seu intermédio a Grécia e todo Ocidente), Caldéia (de ingerência fundamental nos povos do Oriente-Médio e mediterrâneos) e os celtas (de particular influência na Espanha, Irlanda, Inglaterra e França).

Entretanto, durante séculos, foi tabu o cruzar as Colunas de Hércules e penetrar o oceano Atlântico (a raiz Atl, encontra-se ainda hoje muito difundida entre os povos Nahuatl) o que, finalmente, por imperativos cíclicos e históricos, foi levado a cabo pela Espanha, seguida de Portugal e posteriormente da Inglaterra, França, Holanda, etc. Foi assim como se “descobriu” a América e, a partir desse momento, ela se converteu no objetivo econômico de toda a Europa, deslumbrada exclusivamente pelo ouro e pelas riquezas destas terras, a tal ponto que não souberam emprestar nenhuma atenção à cultura desse imenso continente, à sua tradição e seus homens, que foram exterminados fisicamente, e menosprezados seus ritos, mitos, símbolos, usos e costumes, expressões vivas de sua concepção cosmogônica e teogônica. Esta última situação se prolongou até nossos dias, e só uma minoria de estudiosos (em particular desde meados do século XIX e no transcurso do XX) dedicou-se a resgatar os valores tradicionais pré-colombianos, que se encontram em número indefinido e em qualquer parte, nas centenas de povos (e línguas) distintos que se acham pulverizados desde o Alasca à Terra do Fogo. Entretanto, todas estas nações, que incluíam tanto a povos nômades ou semi-nômades como a medianas ou grandes civilizações, têm uma óbvia origem comum, apesar de suas diferenças culturais, muitas delas surgidas como adaptações geográficas e históricas diversas, e inclusive por possíveis contatos com outras sociedades.

O estudo da Tradição Pré-colombiana é muito importante tanto para aqueles que, por uma ou outra razão, tiveram contato com a América, como para os investigadores das tradições, religiões e filosofias comparadas. Particularmente dos símbolos, ritos e mitos, pois se poderá comprovar, com surpresa, como esta cosmogonia e teogonia se identificam com as mediterrâneas (a tal ponto que os sacerdotes cronistas da conquista não deixam de destacar as estreitas relações com o judaísmo e com o cristianismo) e até com as da Índia e da China, para dar só um par de exemplos, demonstrando-se a identidade essencial de todas as tradições, vivas ou mortas, como é este último o caso da Pré-colombiana, cujos símbolos esperam ser revivificados para transformarem-se em energias atuantes no desenquadrado e crepuscular mundo moderno. Deve, entretanto, o leitor atuar com suma prudência e não deixar-se tentar por falsos indícios ou entusiastas aspirações. Talvez poderia tomar a reconstrução deste imenso quebra-cabeças que traçam as antigas culturas indígenas, ou outras igualmente pouco conhecidas, como auxiliares na própria Iniciação; sobretudo, se pudesse compreender a simbólica desta Tradição como arquetípica, e portanto capaz de manifestar-se e atuar em nossa psique, em nossa própria vida. Fechamos com um fragmento do Peri Agamaton de Porfírio, apropriado para a idéia da vivificação de uma Tradição virtualmente morta.

“Desvelo noções de uma sabedoria teológica; é Deus e as potências de Deus o que os homens revelaram mediante estas noções. Têm-no feito através de imagens apropriadas aos sentidos, imprimindo as coisas invisíveis nas obras visíveis, para aqueles que aprenderam a decifrar nas representações o que se encontra gravado referente aos deuses, da mesma maneira que se faria nos livros. Além disso, nada tem de estranho em que os mais desprovidos de instrução tomem às estátuas por blocos de pedra ou de madeira, exatamente como aqueles que não sabem ler não vejam nas estelas, as pranchas ou os livros, mais que pedras, madeiras ou papiro encadernado”.

 
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O RENASCIMIENTO ELISABETANO

 

Em meados do século XVI se produziu um certo declinar do movimento hermético que com tanta força emergiu cem anos antes na Itália. Neste fato, tiveram muito que ver as ações levadas a cabo pela contra-reforma, que, em seu pretendido afã por conservar e defender o que ela entendia pela “pureza” da religião católica, perseguia todas aquelas idéias que não correspondiam a seus limitados critérios. Só nas nações onde os respectivos estados abraçaram a Reforma persistia a tolerância religiosa, tal o caso da Alemanha, Boêmia e Inglaterra. Mas as particulares circunstâncias geográficas deste último país fizeram possível que ali se desse, mais que em nenhum outro, um novo ressurgimento tradicional, propiciando o que com razão se deu em chamar o Renascimento Elisabetano, no qual também participou o hermetista e neoplatônico italiano Giordano Bruno, que residiu durante vários anos na Inglaterra, e ao que se devem obras tão importantes como De umbris idearum, Da causa, princípio e um, Dos heróicos furores, De innumerabilibus, immenso et infigurabili, Do infinito, do universo e dos mundos, Expulsão da besta triunfante, etc. Com efeito, sob o reinado de Elisabete I, que vai de 1558 a 1606, a antiga Albion conheceu sua maior época de esplendor no terreno cultural, e no qual certamente exerceram uma notável influência as concepções herméticas. Do mesmo modo, deve-se considerar que na Inglaterra daquela época sobreviviam algumas correntes do cristianismo templário e cavalheiresco, que seguiam mantendo vivo o antigo ideal medieval do Império cristão, encarnado ali na figura mítica do rei Artur e seus doze cavaleiros da “Távola Redonda”, cuja lenda está baseada também nas antigas tradições celtas. Assim, as favoráveis condições que naquela época vivia a Inglaterra e sua decidida oposição ao poder quase exclusivamente temporal em que havia caído a Igreja Católica, foram fatores decisivos para que essa idéia da monarquia imperial renascesse com força. O suporte doutrinal no qual se apoiaria dita monarquia não seria outro que o Hermetismo e a Cabala cristã.

Por outro lado, e do ponto de vista em que aqui nos situamos, pouco importa que a tão esperada reforma universal não chegasse a cumprir-se totalmente, tal e como desejavam seus promotores. Longe de ter sido em vão, esse intento gerou toda uma plêiade de escritores, poetas, artistas e cientistas profundamente interessados na Ciência Sagrada. Baste recordar a Shakespeare, cujas peças teatrais transluziam uma visão do mundo fundada na cosmogonia hermética e cabalista cristã, especialmente em “A Tempestade”, “O Mercador de Veneza” e “O Rei Lear”. Sem esquecer tampouco a Edmund Spenser e seu poema épico “A Rainha Fada”, intensamente saturado de neoplatonismo hermético e claramente alusivo à função reformadora da monarquia Tudor. Mas o personagem chave do Renascimento Elisabetano é sem dúvida John Dee, até tal ponto que resulta impossível compreender este período da história esotérica do Ocidente sem ter em conta este mestre, de quem se diz que possuía uma enorme biblioteca abrangendo todos os ramos do saber hermético. Renomado matemático, Dee desenvolveu sua concepção do cosmo apoiando-se inteiramente nas proporções harmônicas dos números e da geometria, em total acordo com o exposto por Reuchlin, Giorgi, Agrippa e inclusive Dürer, de quem Dee extraiu sua teoria sobre ditas proporções no corpo humano. O essencial de seu pensamento o verteu na que aparece como sua obra fundamental, a Monas Hieroglyphica, quer dizer, a figura, gravura ou símbolo sagrado (hieróglifo) representativo da Mônada ou Suprema Unidade. Basicamente, a Monas Hieroglyphica explica como o Ser se desdobra, e é imanente, nos três mundos, que por sua vez, e tomados em seu conjunto, formam uma imagem “matemática, mágica, cabalística e anagógica”, pela qual é possível remontar-se para a contemplação da própria Unidade, de sua transcendência. Com efeito, é por meio da matemática pitagórica, da magia, da cabala e da anagogia (busca e interpretação do sentido metafísico encerrado nas Santas Escrituras) que o mistério fecundo da existência se revela em toda sua plenitude e majestade. Para Dee, no mundo elementar as leis divinas se expressam através da ciência matemática, entendida como tecnologia aplicada; no intermediário, ditas leis regulam os ciclos astrológicos e astrais; e no espiritual se manifestam como energias angélicas. Dee tampouco foi alheio à Alquimia, especialmente à legada por Agrippa, que como sabemos estava unida à Cabala cristã. Em Dee, Alquimia e Cabala efetuam um sistema mágico-teúrgico, cujo principal objetivo consistia na comunicação direta com os anjos, mediante o poder da invocação e da oração.

Neste sentido, Dee desenvolve uma Cabala de tipo “prático”, que é na realidade uma forma cristianizada da magia Angélica, fundamentada no conhecimento dos nomes divinos e nos princípios da cosmologia hermética e da metafísica, pelo que não tem nada que ver com a “cabala prática” nem tampouco com a “magia cerimonial” em uso entre os ocultistas dos séculos XIX e XX, nascida de uma grosseira confusão entre o psíquico e o espiritual. Dentro do período elizabetano, Dee chegou a ser um dos principais inspiradores do movimento político-hermético que deveria conduzir à nova ordem imperial, à frente do qual estaria a própria rainha Elizabete I. Nesta perspectiva, deve se ver a série de viagens que Dee leva a cabo por diversas cortes da Europa Central, onde, ao mesmo tempo que difunde a mensagem da monarquia cristã, realiza fecundos contatos com os núcleos herméticos-cabalistas por ali existentes. Por exemplo, reside algum tempo na corte do imperador Rodolfo II, da Boêmia, que se rodeou sempre de mestres cabalistas e herméticos, e a cujo serviço precisamente esteve o médico alquimista Michael Maier. Significativamente, durante os anos em que Dee permaneceu no continente (de 1583 a 1590) estava sendo gerado o movimento hermético rosa-cruz, que tão destacada importância teria na primeira metade do século XVII.

 
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NOTA: DOUTA IGNORÂNCIA OU IGNORÂNCIA DOUTA?

 

Como já foi dito, existe uma grande diferencia entre a “douta ignorância”, chamada assim por Nicolas da Cusa ao querer explicar aqueles estados que tão bem descreve a “teologia negativa”; e outra por certo a simples ignorância geral que, por ser tal como é, presta-se à cumplicidade com o êxito, ou a hipócrita bênção oficial, ou com o que exigem a moda e o mercado. Ambas estão invertidas, nos extremos da polaridade, e os seres que encarnam estas realidades são opostos; os primeiros experimentam o não saber, os segundos, os “doutores” ignorantes, não sabem do saber e, portanto, acreditam que os outros tampouco sabem, e isso os faz capazes de fingir saber.

 
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O MOVIMENTO ROSA-CRUZ

 

O conjunto da filosofia hermética do Renascimento encontrou sua última expressão no que se chamou movimento rosa-cruz, ou rosacruciano, ao qual pertenceram Robert Fludd, Michael Maier, Valentín Andreae, Enrique Khunrath e Comenius, entre outros. Como já dissemos, este movimento nasce em princípios do século XVII, concretamente nos países onde John Dee dera a conhecer a mensagem da reforma universal, apoiada nos postulados doutrinais do hermetismo alquímico e cabalístico-cristão, do qual também é herdeiro o teósofo alemão Jacob Boehme (1575-1624), que teve que lutar toda sua vida, como tantos outros mestres herméticos, contra a intolerância religiosa, chegando inclusive a conhecer por algum tempo a amargura do cárcere. Em suas obras –principalmente A Aurora que desponta, De Signatura Rerum e Mysterium Magnum– Boehme expõe com verbo inflamado as etapas pelas quais o homem pode recuperar seu “corpo de luz” anterior à queda adâmica, nascendo como filho da Sabedoria Eterna.

O movimento rosa-cruz toma força com o resultado da aparição dos manifestos entitulados Fama Fraternitatis e Confessio Fraternitatis, cuja autoria, direta ou indiretamente, pertencia ao misterioso “Colégio Invisível da Rosa-Cruz”, do qual os rosacrucianos obtiveram precisamente o nome. Pela importância que reveste para compreender a história sutil da época que estamos tratando, convém que nos detenhamos um momento no conteúdo desses manifestos, e especialmente nos eventos acontecidos ao fundador legendário dessa Fraternidade iniciática: Christian Rosenkreutz (literalmente “Cristão Rosa-cruz”). Em primeiro lugar, diremos que esse nome é simbólico, pois não designa um personagem concreto, mas sim uma “entidade coletiva” que desempenhou uma função tradicional em um período determinado. Diz-se que a “vida” de Christian Rosenkreutz está na transição entre os séculos XIV e XV, quer dizer, quando se gerava a passagem da Idade Média ao Renascimento, com tudo o que isto implicava de reajustamento dos princípios tradicionais às novas condições históricas e cíclicas. Como já sabemos, uma das organizações que na Idade Média detinha o conhecimento iniciático e esotérico era a Ordem da Templo, que além disso mantinha relações doutrinais com análogas organizações do esoterismo islâmico, o que propiciava o vínculo espiritual entre o Ocidente e Oriente. O cruento desaparecimento dos templários nos inícios do século XIV, concretamente em 1314, produziu uma eventual ruptura desse vínculo, com o que se supunha a perda para o Ocidente de uma parte essencial de sua própria sabedoria tradicional, pois na verdade o Oriente não designa senão a região simbólica onde reside o Centro Supremo e primordial, a fonte de todo conhecimento metafísico e espiritual. Neste sentido, as “viagens” que efetuou Christian Rosenkreutz por diversos países do Oriente (no transcurso dos quais “recebeu os segredos da magia e da cabala”) tinham como objetivo o de voltar a restabelecer o laço que se quebrara, com o fim de que o Ocidente mantivesse a regular comunicação com o Centro Supremo. Ao voltar para a Europa, Christian Rosenkreutz funda a “Fraternidade da Rosa-Cruz”, de conteúdo hermético-cristão que, ao contrário de seus antecessores templários, não conservava uma organização de tipo exterior, mas sempre permaneceu no mais completo anonimato, passando a atuar de um plano estritamente espiritual e invisível; por este motivo, então, a denominação de “Colégio Invisível”.

Assim, pois, podem-se compreender quais foram na realidade os “inspiradores” de virtualmente todos os movimentos esotéricos que apareceram no Renascimento, movimentos cujo caráter hermético-cristão não deixa nenhuma dúvida. O fato de que os manifestos Rosacruzes se fizessem públicos em princípios do século XVII, indicava que tinha chegado o momento de passar a uma ação muito mais direta, já que as condições adversas que naquela época existiam no Ocidente assim o requeriam. Desta maneira, motivados por ditos manifestos, uma série de adeptos herméticos se agruparam para criar o movimento rosacruciano, que devia ser como uma espécie de braço exterior, mas sem relação aparente, com o “Colégio Invisível da Rosa-Cruz”. Esse movimento teve inclusive um alcance político-religioso, pois também se tratava de organizar um Estado semelhante ao que existia na cristandade medieval: o Sacro Império Romano Germânico. Com segurança, os projetos de John Dee e dos reformistas elisabetanos, para restabelecer uma monarquia cristã de alcance universal, abonaram o caminho para acometer semelhante empresa, à frente da qual se encontrava o príncipe renano Frederico V do Palatinado. Este pequeno principado no centro da Europa foi, durante a segunda década do século XVII um autêntico “Estado Rosa-cruz”, aonde confluiriam quase todas as correntes herméticas do último período do Renascimento. As universidades de Heidelberg e Oppenheim converteram-se em centros de ensino propagadores da filosofia oculta, gerando assim uma cultura que ficou impressa em numerosas obras arquitetônicas, científicas, artísticas e literárias. Nesse clima de extraordinária e fecunda criatividade em todos os campos do saber, vemos o engenheiro e arquiteto Salomão de Caus, que desenhou jardins e monumentos mágicos e simbólicos, tomando como referência as leis da perspectiva, das proporções e harmonias do número, da geometria e da música. Encontramos deste modo os editores Teodoro de Bry e Mateo Merian, que imprimiram e realizaram os emblemas e gravuras de “As Bodas Químicas de Christian Rosenkreutz”, de Valentín Andreae; os vários volumes da “Historia Metafísica do Macrocosmo e do Microcosmo”, de Fludd, e “Atalanta Fugitiva” de Maier, para citar apenas alguns.

Recordemos também as gravuras alquímico-cabalísticas de Khunrath em sua obra “Anfiteatro da Eterna Sabedoria”, e especialmente a que leva por título “A Cova dos Iluminados”, onde se conservavam os tesouros da filosofia rosa-cruz, herdeira do pensamento de Ficino, Pico de la Mirandola, Reuchlin, Agripa, Giorgi, Postel, Paracelso e Dee, principalmente, embora por razões de brevidade omitamos outros numerosos adeptos da Arte e da Ciência Hermética. Digamos que a utilização da técnica da gravura, para apresentar visualmente as idéias contidas nos livros herméticos, supunha não só uma forma de embelezá-los esteticamente, mas também brindar uma seqüência de imagens ordenadas que facilitassem o despertar da intuição intelectual (espiritual) do leitor, quer dizer, que desempenhavam uma função didática apta para veicular o Conhecimento. O desaparecimento do movimento rosacruciano trouxe como conseqüência uma concepção cada vez mais racionalista do saber científico, que desembocaria de modo irreversível na solidificação positivista do século XIX, que supôs um limite no descenso da degradação cíclica, dando passagem assim a esta nossa época de completo caos e dissolução em todas as ordens da existência.

 

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