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O HERMETISMO ALEXANDRINO

 

Como dissemos no capítulo anterior, foi na cidade egípcia de Alexandria onde a Tradição Hermética acabou por se constituir num corpo de doutrinas. E não é casual, senão devido a razões histórico-geográficas e simbólicas, que fosse no Egito, e não em outro lugar, onde esta tradição começaria a irradiar sua influência a todo Ocidente. Como assinala Plutarco, nos tempos dos faraós este país recebia também o nome de Kemi, que significa "terra negra" como já sabemos, de onde provém –com o adicionado do artigo árabe al– a palavra Alquimia, a ciência hermética que contém os sagrados mistérios dos sacerdotes egípcios, que na realidade formavam uma entidade intelectual, cuja autoridade espiritual emanava diretamente do deus Thot, o mensageiro do Conhecimento, deidade essencialmente civilizadora (doa aos homens a escritura junto com as ciências e as artes da Cosmogonia), que entre os gregos tomou o nome de Hermes e o de Mercúrio entre os romanos. Também, existe outro dado tradicional de origem árabe que vem confirmar o que dizemos: trata-se da expressão "A Tumba de Hermes", que é como se designava antigamente à maior das pirâmides do Egito, expressão que também pode se estender às duas outras que estão a seu lado. Neste sentido, essa mesma fonte tradicional assegura que em dita pirâmide se encerra a Ciência Sagrada transmitida por Hermes (identificado com o profeta Idris ou Henoch) desde os tempos antediluvianos, em clara alusão à civilização Atlante, remontando-se através desta até a própria Tradição Primordial. Afirma-se também que a referida pirâmide guarda essa Ciência não em forma de documentos ou inscrições hieroglíficas, senão "fixada" em sua própria estrutura exterior e interior, pois na verdade se trata de um autêntico modelo simbólico do Cosmos, ao qual reflete em todas suas proporções e medidas. Por conseguinte, é ao conhecimento do que esse modelo expressa ao que em realidade alude "A Tumba de Hermes", expressão que também sugere o caráter secreto e velado que dito conhecimento tomou a partir de um momento dado no devir da história humana.

Por tudo isso, não deve resultar estranho que esse ressurgir da Arte e da Ciência de Hermes, acontecido nos primeiros séculos de nossa era, ocorresse precisamente em Alexandria, ou seja, em terras do Egito, ao qual contribuiu notavelmente a influência grega, sobretudo através da filosofia platônica e pitagórica, em grande parte herdeira dos mistérios órficos e das tradições dos antigos povos helenos, de origem igualmente primordial. A isto teria que adicionar o aporte recebido de outras correntes tradicionais, como o judaísmo, o recém nascido cristianismo, o gnosticismo não dualista e a cosmologia astral dos sacerdotes caldeus, que chegaram a Alexandria, junto com outros sábios orientais (principalmente indianos e budistas), através das grandes rotas traçadas vários séculos antes por Alexandre Magno. Mas a Tradição Hermética, sob a forma que adotou a partir de então e tal e como chegou até nossos dias, é fundamentalmente de origem greco-egípcia, o que lhe permitiria propagar-se com rapidez por todos os países onde estava implantada, desde tempos mais antigos, a cultura grega, ou melhor greco-latina: praticamente por toda a planície mediterrânea, a Ásia Menor e o Oriente Próximo. Daí as constantes referências a Hermes e à doutrina hermética entre os filósofos, magos e teúrgos dos mais diversos países e regiões, o que deu lugar a uma comunidade de pensamento, ligada à "corrente áurea" imemorial, que sob o influxo espiritual-intelectual do Mensageiro dos deuses nutrirá e estará presente em todas as correntes esotéricas e sapienciais forjadoras da identidade cultural do Ocidente.

Todo esse cúmulo de sabedoria e conhecimento os mestres herméticos alexandrinos o verteram através de uma série de livros que chegaram até nós sob o nome dos Hermética, entre os quais se contam o Corpus Hermeticum, integrado, por sua vez, por outros escritos que como o Poimandrés, o Asclépio e a Koré Kosmou, pertencente aos Extratos de Estobeo, descrevem o conjunto da Revelação de Hermes, cujo fim último é conseguir que com a aprendizagem e conhecimento da Cosmogonia, da gênesis do mundo e da alma humana, ou seja do Plano Intermediário, o adepto vá acordando em si mesmo o Nous (o Espírito universal), e a possibilidade com isso de contemplar a realidade do que está além do cosmos, ao Um e Só, no que reside o verdadeiro Bem. Dentro dos Hermética, temos de considerar igualmente os Oráculos Caldeus, de Juliano, o Teúrgo e , claro, todos aqueles livros e tratados de caráter astrológico, alquímico e mágico que falam das correspondências e analogias entre o homem, os diferentes reinos da natureza (mineral, vegetal e animal) e o mundo celeste: os planetas, o zodíaco e as constelações estelares, caracterizando tudo isso uma visão do cosmos considerado como um todo, onde as partes que o integram respondem a estímulos semelhantes, manifestando desta maneira a Unidade que os une entre si e da qual procedem pois, como dizem os textos, "o conhecimento (a gnose) é a culminação da ciência".

Falamos, por exemplo, do Livro de Hermes Trismegisto, O Transe de Salomão, O Livro Sagrado de Hermes a Asclépio, O Livro das virtudes das ervas, as Kyranides, etc. Destacar também a Hieroglyphica, cujo autor, Horapolo (nome integrado por Hórus e Apolo, as duas divindades solares de Egito e Grécia) fala-nos da serpente ou dragão Uroboros, ideograma alquímico que foi considerado posteriormente pelos hermetistas medievais e renascentistas como um dos símbolos da Grande Obra. Deixar constância também da figura de Bolos de Mendes, que viveu no século II a.C. e autor do Livro das Simpatias e de Física e Mística, onde se descrevem as correspondências entre a ciência da natureza e a ciência divina. E desde já não devemos esquecer do alquimista Zósimo de Panópolis e de duas de suas principais obras: Conta Final e Questões Alquímicas, nas quais deixou escrito que "a raça dos filósofos está acima da fatalidade", evocando ao mesmo tempo ao "três vezes grande Platão e ao infinitamente grande Hermes".

 
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COSMOVISÃO HERMÉTICA ALEXANDRINA

 

O universo foi criado por uma vibração sonora primordial, emitida no princípio, quer dizer, agora mesmo (pois a revelação é coetânea com o tempo), pela Palavra, Verbo ou Logos spermatikós, que é também o Mediador através do qual o Ser Supremo, o Pai, concebe o modelo do mundo. Este Mediador ou Intermediário entre a Unidade primigênia e o mundo hílico (material) recebe o nome de Nous Demiurgo ou Espírito da Construção Universal. Por sua vez, o Nous Demiurgo governa sobre as divindades astrais que regem cada uma das esferas planetárias, que organizam, junto às divindades zodiacais, a Roda do Destino, na qual se projeta a existência dos seres e das coisas. Este é o plano no qual atua diretamente o Anima Mundi, ou segundo 'Demiurgo' (o Adão Protoplastos), que conjugando as energias contrárias e duais implícitas já nessas divindades, gera o fluir perene e harmonioso dos ciclos e dos ritmos cósmicos. Finalmente, essas energias celestes descem ao plano hílico ou Corpus Mundi, ao qual insuflam vida e ordem a partir das qualidades respectivas dos quatro elementos em suas variadas combinações. A natureza torna-se então um recipiente onde se refletem os diversos níveis da existência universal. E é pelos signos reveladores que se expressam nela (como se de um oráculo se tratasse) que o homem pode se remontar a sua origem, ascendendo pelos degraus da Escala Filosófica, pois conserva em seu interior a semente da alma imortal. Mas essa ascensão se faz efetiva mediante a ciência teúrgica, que põe o homem em comunicação com os deuses e as entidades angélicas que, mediante o rito e a invocação, transmitem sua inteligência e sabedoria ao coração do adepto.

Temos assim, muito resumido, o conteúdo cosmogônico do Corpus Hermeticum, que o estudante de nosso Programa já conhece pelas estreitas vinculações que tem com a Árvore da Vida cabalística.

 
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A IDADE MÉDIA

 

O qualificativo de "idade obscura", que por parte da maioria dos historiadores modernos se atribui ao Medievo, é uma prova a mais do espesso véu que cobre à excessivamente materializada mentalidade atual, que em seu desconhecimento a tudo confunde e inverte. No entanto, desde algum tempo já, e desde diversos campos da investigação, voltou-se a pôr este ciclo histórico no lugar ao qual corresponde, cuja característica mais notória foi o esplendor e a presença do sobrenatural e do sagrado em todas as expressões de sua cultura.

Para entender a Idade Média, tal como qualquer época histórica, há que saber visualizá-la dentro do conjunto do ciclo ao qual pertence. O Medievo europeu corresponde ao ciclo particular da tradição cristã, e representa um segmento ou parte desse mesmo ciclo, exatamente sua metade, daí a denominação de Idade Média. Com ela se atinge –entre os séculos VIII e XIV– o ponto álgido, a culminação da idéia de civilização especificamente cristã, que não obstante se gestara durante o curso dos séculos anteriores (que não devem de jeito nenhum se desconhecerem), e concretamente desde o momento em que, depois da morte de Cristo, os apóstolos e seus discípulos começaram a difundir a mensagem por todo Ocidente, chegando até a Inglaterra.

Este foi o caso de José de Arimatéia e de Nicodemo, de quem se diz eram portadores da copa do Graal que continha o sangue e a água (o espírito e a alma) que emanaram da ferida de Cristo na cruz. Esta viagem de José de Arimatéia às ilhas britânicas constitui sem dúvida uma das chaves mais importantes para compreender o autêntico espírito que animou à cristandade medieval, pois, com toda segurança, produziu-se uma assimilação da antiga tradição celta –e muito especialmente do aspecto mais interior (esotérico) e iniciático desta, cujo conhecimento estava em posse dos sacerdotes druidas–, com o cristianismo. A conhecida e importante lenda do Graal, que circulou por toda a Idade Média (e na qual se relatam as gestas heróicas e iniciáticas do Rei Artur e dos Doze Cavaleiros da Távola Redonda) [talvez] não houvesse sido possível sem a herança celta.

Também, muitos outros elementos procedentes de outras tradições se encontraram na Idade Média. Temos o importante aporte da civilização romana, especialmente no que se refere à organização social e jurídica, na arquitetura e na arte (o românico, por exemplo), na constituição das corporações de construtores, semelhantes aos Collegia Fabrorum, e também na idéia do Império e do Imperador como detentor supremo da autoridade espiritual e do poder temporal (recordemos neste sentido a criação do Sacro Império Romano, auspiciada pelo imperador Carlos Magno, e com o qual se dá começo propriamente à Idade Média), ainda que desde o ponto de vista exotérico estas funções estivessem às vezes assumidas pelo papado e pelos reis, respectivamente.

No âmbito puramente ontológico que assentou as bases da filosofia medieval, há que se mencionar, entre os séculos IV e V, os chamados Pais da Igreja, como Dionísio Areopagita, Clemente de Alexandria, Santo Agostinho, Orígenes e Máximo, o Confessor, conhecedores todos eles das doutrinas herméticas, platônicas e gnósticas, das quais extraíram o mais essencial.

Mas a Idade Média não poderia compreender-se em sua totalidade se não tivéssemos em conta igualmente às outras duas tradições abrahâmicas: a judaica e a árabe. Quanto à primeira, é evidente que o cristianismo, por suas origens, procede diretamente do Antigo Testamento, e a expressão judaico-cristã convinha perfeitamente a certas organizações do esoterismo cristão, às quais não eram desconhecidos os ensinos da Cábala, cujo maior apogeu se deu também durante este período, sobretudo na França e na Espanha. No que respeita à tradição islâmica, é notória a influência que esta exerceu entre as artes e as ciências, e se conhece a importância que teve na propagação dos textos alquímicos e da Tradição Hermética em geral.

Neste sentido, há que se assinalar o papel que teve a península Ibérica, já que fundamentalmente, através dela, a extraordinária riqueza da cultura árabe (e com ela a recuperação da antiga filosofia grega, especialmente Pitágoras, Platão e Aristóteles) foi conhecida em toda Europa. Por outro lado, temos os intercâmbios mantidos pelos iniciados muçulmanos e os cristãos durante a época das Cruzadas, fato que propiciaria uma comunicação de ordem doutrinal entre Oriente e Ocidente, que perduraria além da Idade Média, chegando até o Renascimento, depois do que se imporiam definitivamente as filosofias e ciências racionalistas inspiradoras da era moderna, sem dúvida a autêntica "idade obscura".

 
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O HERMETISMO MEDIEVAL  I 

 

Coincidindo com a queda do Império Romano do Ocidente, durante os séculos VI e VII se produz um período de ocultamento do pensamento tradicional que contrasta com o apogeu conhecido nos séculos anteriores, que, como assinalamos, teve em Alexandria seu foco de irradiação mais importante. Este ocultamento também afetou a Tradição Hermética, que depois do desaparecimento da escola de Alexandria e de Atenas se concentrará em determinadas cidades do Próximo Oriente, e especialmente em Bizâncio (Constantinopla), naquela época capital do Império Romano do Oriente, já completamente cristianizado. Efetivamente, Bizâncio aparece como a herdeira mais importante do legado hermético e neoplatônico, e em definitivo da cultura clássica, que ali viverão um novo florescimento, perdurando até bem depois do início da Idade Média. Essa herança está presente, por exemplo, na obra do bizantino Miguel Psellos (século XI), grande comentador do Corpus Hermeticum, de Platão, Proclo, Dionísio Areopagita, etc., e que posteriormente exercerá uma notável influência na tradição renascentista.

Mas o Hermetismo medieval ressurge com força sob o impulso da nascente civilização islâmica, que em menos de cem anos se estende da China e da Índia até a Península Ibérica. Efetivamente, existem numerosos adeptos árabes que traduzem para sua língua os livros herméticos (sobre Alquimia, Astrologia, Magia, Matemáticas, Medicina, e as ciências da natureza em geral), o que faz possível que estes se conservem e passem a ser traduzidos posteriormente ao latim, permitindo assim sua difusão por toda Europa. Isto se acompanha com as traduções do "divino" Platão e de toda a tradição filosófica emanada de seus ensinos. Tudo isto, como dissemos, passará ao Ocidente, que na época de expansão do islã (séculos VIII-IX) vivia sumido na difícil transição da Idade Antiga à Idade Média.

Por outro lado, não é mera casualidade, senão algo que depende dos desígnios divinos que entretecem a estrutura invisível da história, que simultaneamente à penetração árabe na Península Ibérica (século VIII), estivesse sendo gestada a unidade política, cultural e religiosa da cristandade sob a autoridade temporal e espiritual do Sacro Império Romano, instituído por Carlos Magno, e com o qual começa definitivamente a Idade Média, como vimos no capítulo anterior. Esta unidade vai facilitar que, através da Espanha muçulmana (país que recebe a denominação de "Porta Real da Alquimia" e "Porta Solar"), a arte e a ciência sagrada de Hermes cheguem efetivamente a Europa. Por cima das diferenças que possam afetar às relações que entre si mantêm os exoterismos das civilizações tradicionais, sempre prevalecerá o ponto de vista esotérico e metafísico, que as identifica no essencial. O Califado de Córdoba e, mais tarde, Toledo são as cidades nas quais se produz o verdadeiro renascimento medieval, e onde frutiferamente vão conviver as três tradições do livro: judaísmo, cristianismo e islã. Mas é especialmente com a escola de tradutores de Toledo que começa a se verter ao latim o hermetismo acumulado e desenvolvido pelos árabes. Sábios vindos de todos os países da cristandade (por exemplo Miguel Escoto e Gerardo de Cremona) coincidem na cidade imperial, "crisol de alquimistas".

Junto a Toledo temos de ressaltar a enorme importância das Escolas de Chartres e de Oxford (Séculos XII e XIII) na difusão das idéias herméticas e platônicas. À primeira pertenceram Bernardo de Chartres, Guilherme de Conches e Bernardo Silvestre, todo eles continuadores da obra de João Escoto Erígena (século IX), monge irlandês que recebe por sua vez a herança do hermetismo alexandrino e do platonismo cristão de Dionísio Areopagita. Na segunda encontramos ao já mencionado Miguel Escoto, alquimista e astrólogo, a Robert Grosseteste e Roger Bacon, conhecido como o "Doutor Mirabilis" pela grande síntese que realizou de todos os ramos da Ciência Sagrada.

Pela importância que tiveram no desenvolvimento do Hermetismo medieval merece destacar-se a tradução do Livro de Morieno, no qual se relata a lenda segundo a qual Hermes Mercúrio, o "Pai dos Filósofos" recuperou as ciências e artes sagradas depois do dilúvio. Traduz-se também a Tábua de Esmeralda, texto fundamental da Alquimia greco-egípcia posto sob a autoria do próprio Hermes Trismegisto, e cujos doze pontos constituem um resumo sintético de todo o ensino da Grande Obra. Não menos importante é a tradução da Multidão dos Filósofos, onde se descreve, em forma de diálogos alquímicos, o acontecido num congresso imaginário de filósofos gregos como Pitágoras, Sócrates, Demócrito, Parmênides, etc. Também o livro alquímico e astrológico Picatrix, tradução que se faz durante o reinado do rei sábio Alfonso X, ao qual se deve a redação do Lapidário, onde se fala das propriedades mágicas do mundo mineral posto em relação com as energias astrais e planetárias. O mesmo ocorre com o Livro da Misericórdia, do célebre alquimista árabe Geber. Séculos mais tarde, em pleno Renascimento, Cornélio Agrippa, influenciado pelos ensinos deste autor, escreve em Da Filosofia Oculta: "Ninguém pode sobressair na arte alquímica sem conhecer os princípios em si mesmo, e quanto maior o conhecimento de si mesmo, maior será o poder de atração adquirido, e se realizarão mais coisas grandes e maravilhosas". Este é o fundamento da Alquimia natural e espiritual, que o grande metafísico sufi Ibn Arabi desenvolverá em sua obra A Alquimia da Felicidade Perfeita, mostrando as etapas que o iniciado deve atravessar em sua “viagem", descendo primeiro aos planos elementares até retornar, numa ascensão vertical, a "A Força do Elixir" da Sabedoria Divina. Em dita ascensão, a alma do peregrino percorre os céus planetários revestindo-se da luz cognoscitiva que mora em cada um deles, chegando finalmente ante a presença do "Trono Divino", "motor imóvel" ou Arquétipo Supremo no qual será absorvido numa plena identificação.

No hermetismo cristão esta descrição do universo espiritual se representará iconograficamente com uma série de círculos concêntricos, com a terra em seu centro, girando em torno dela os três elementos restantes mais o éter, os sete planetas, o zodíaco, o céu das estrelas fixas ou Empíreo, morada do fogo puro e eterno, em cima do qual aparece a figura da Divindade. Esta imagem do mundo, enraizada na astrologia de Ptolomeu e no Timeu de Platão, influirá notavelmente em Dante, que escreveu a Divina Comédia baseando-se em parte nos ensinos do sufismo islâmico, e especialmente em quem foi um de seus máximos representantes, o já nomeado Ibn Arabi. Este era considerado "Filho de Platão" e o "Mestre por Excelência", que tinha atingido o grau de "enxofre vermelho", que não é outro que o estado espiritual, que em linguagem alquímica cifrada serve para designar àquele que chegou de maneira definitiva ao Conhecimento mediante a obtenção da "Pedra Filosofal".

 
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DIONÍSIO AREOPAGITA

 

Durante toda a Idade Média e Renascimento, foi extraordinária a influência deste autor, representante do pensamento neoplatônico e da autêntica espiritualidade cristã. Supostamente se apresenta nosso personagem como discípulo direto de São Paulo, que serve para difundir seus escritos e evitar censuras por parte da igreja “oficial”. Sua “teologia negativa” na corrente de Proclo e Plotino, influiu diretamente em toda a Idade Média anterior a São Tomás (o que inclui vários séculos), em particular (para citar um só exemplo) na escola do Chartres, e igualmente em mestre Eckhart (e em Tauler e Suso), em Nicolás de Cusa e São João da Cruz, entre outros tantos sábios, teólogos e teósofos ocidentais. Escreveu um tratado sobre Os Nomes Divinos e outro texto sobre Teologia Mística, além de um livro sobre Astronomia. Conservam-se, também, algumas de suas epístolas. Reproduzimos aqui duas de suas cartas dirigidas a adeptos.

“A Doroteu, Ministro:

A treva divina é aquela luz inacessível na qual, diz-se, Deus habita1. E como aquela seja inapreensível por causa da difusão exuberante de sua luz sobrenatural, entretanto, nela descansa qualquer que mereça conhecer e ver Deus, e pela mesma razão pela qual não vê nem conhece, este mesmo existe naquele que transcende qualquer visão e conhecimento, sabendo só do que está além das coisas sensíveis e inteligíveis, dizendo de uma vez que o profeta: ‘para mim é admirável sua ciência, tão elevada que jamais poderei alcançá-la’2.

Deste modo é como se diz do divino Paulo, que conheceu Deus quando soube que ele existia transcendendo toda ciência e inteligência; deste modo diz (ele) que seus caminhos são indecifráveis e inescrutáveis seus juízos3, inenarráveis seus dons e sua paz ultrapassa a todo entendimento4, já que descobriu Aquele que é totalmente transcendente e soube, de um modo que ultrapassa qualquer inteligência, que Aquele que é autor de todas as coisas, é também superior a todas elas.”

1 I Tim., VI 16.
2 Salmo 139 (Vulgata, 138), 6.
3 Romanos, XI, 33.
4 Filipenses, IV, 7

“A Sosipatro, Sacerdote:

Não te julgue vitorioso, venerado Sosipatro, por atacar aquele culto ou opinião que não te parece legítima pois, se arguíres retamente contra eles, não por isso demonstrarás o valor positivo de tuas afirmações; pode ser que, tanto para ti como para outros, escape-te a verdade, que é, por sua vez, oculta e verdadeira, a favor das aparências.

Pois não é bastante que um objeto não seja vermelho ou brilhante, para que seja branco; nem, se alguém não for cavalo, não por isso necessariamente é um homem. E assim, se me quer escutar, isto é o que fará; desiste de falar contra seus adversários, e que tudo o que diga seja para estabelecer a verdade de tal maneira que não sejam válidas as coisas que se digam contra ti.”

 
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O SIMBOLISMO HERÁLDICO

 

A heráldica representa uma expressão mais da simbólica tradicional do Ocidente. Propriamente dita, ela aparece com a constituição das ordens de cavalaria medievais, pelo que tudo o que a ela se refere está diretamente relacionado com a casta dos guerreiros e da nobreza em geral. Muito apropriadamente era chamada a "ciência heróica" ou a "nobre ciência", ainda que também é verdadeiro que existia uma arte heráldica eclesiástica e das corporações de artesãos, esta última muito estendida durante o Renascimento. O rico e complexo simbolismo heráldico seria mais uma antiqualha se realmente não encerrasse um sentido esotérico e fundamentalmente sagrado, que precisamente é o que lhe dá todo seu relevo e importância, e sobretudo o que o converte em plenamente atual e vivo. Sem dúvida a peça central e mais importante da heráldica é o brasão ou escudo. Etimologicamente, o termo brasão deriva do verbo alemão blasen que significa "sopro", revelando com isso a presença de uma inspiração espiritual e divina na elaboração do mesmo. Neste sentido, antes do advento de uma arte escrita e figurada, o brasão era clamado pelo heraldo de armas no campo de batalha e nos torneios, utilizando para isso também a música, ou seja, que era transmitido por meio da palavra e do som. E tudo o que já dissemos no Programa Agartha sobre a semelhança e a complementaridade entre o simbolismo sonoro e oral e o simbolismo geométrico e visual, cabe neste caso particular. Em primeiro lugar, no escudo heráldico se plasma a arte da divisa e do emblema. A divisa é uma sentença, uma frase criptogramática que constitui a alma do que aparece no mesmo, enquanto o emblema é a figura ou o corpo.

Em geral todo o mundo da natureza, os animais (incluídos os fabulosos como o dragão e o grifo), as flores e plantas, as pedras, os metais, os planetas e as estrelas participam da plástica e da simbólica do brasão. Uma figura freqüente neste é o castelo ou qualquer outra fortaleza; iniciaticamente, são símbolos da alma regenerada, da cidade, recinto ou palácio interior fechado às influências profanas. Na realidade, a arte do brasão, sua técnica espiritual, consistia em estabelecer um sistema de correspondências e analogias entre o plano visível e o invisível, o natural e o sobrenatural, tratando-se pois de uma ciência e de uma arte verdadeiramente hermética, e vinculada portanto à idéia de "o que está acima é como o que está abaixo". Não se deve esquecer que para a mentalidade do homem tradicional e arcaico a natureza inteira é uma hierofania, ou seja, uma manifestação do sagrado. Neste sentido as diferentes espécies naturais representadas no brasão estão expressando seus correspondentes arquétipos espirituais, e num grau menor as diferentes tendências psicológicas a elas adscritas. E em tudo isto, o homem como intermediário, já que é ao próprio universo interior deste que se refere todo o código heráldico. Por exemplo, se a águia é um animal eminentemente celeste, a atitude com a qual geralmente se lhe representa (as asas abertas, que em ocasiões abarcam todo o escudo como se o contivesse) não faz senão simbolizar o vôo do espírito para as regiões superiores. Também, a atitude de galhardia e fereza do leão, animal terrestre, evoca e infunde o valor interior imprescindível para combater contra as potências obscuras e caóticas do inconsciente. E o grifo (metade águia e metade leão) supõe um estado intermediário no processo que conduz do terrestre ao celeste. Também se deve considerar o brasão como um instrumento não só para se defender dos inimigos físicos, senão, o que era mais importante, como um marco protetor contra as sutis influências inferiores.

Em todo caso a aquisição de um brasão estava em relação direta com a evolução espiritual daquele que o pretendia, o que sem dúvida eximia de qualquer privilégio fictício e oportunista. Igualmente o significado esotérico dos símbolos, figuras e cores revelava o grau espiritual que tinha atingido seu possuidor; e isto mesmo se fazia extensivo ao escudo heráldico de uma corporação, cidade, reino ou nação. Neste sentido, para conhecer a verdadeira essência e personalidade espiritual de uma cidade ou região nada melhor do que pesquisar nos símbolos presentes em seus brasões. Compreende-se então a importância destes porquanto eram receptores e transmissores de idéias-força e autênticas imagens-mandalas, contendo alguns deles conhecimentos de ordem metafísica muito elevados.


fig. 26

 

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