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NOTA

 

A Kundalini é uma energia que sobe da terra para o céu, extremos para os quais o homem, localizado no centro ou eixo do mundo, é um lugar de encontro e fusão, energia que o iniciado deve conduzir conjugando os opostos para obter através dessa ascensão escalonada a União (Yoga) com a Origem imanifestada do universo, graças ao conhecimento paulatino, por graus –ou estados do ser– do Todo universal.

Dita operação é o trabalho da união dos complementares e a solução dos opostos, que se realiza graças à compreensão dos princípios e a apreensão e contemplação da realidade por intermédio dos símbolos ou veículos revelados, capazes de despertar em nós as distintas leituras do Mistério que a conforma: do manifestado ao imanifestado segundo ensina a Tábua de Esmeralda hermética: "Separa a Terra do Fogo, e o sutil do grosso, suavemente e com todo cuidado. Sobe da Terra ao Céu, desce de novo à Terra, e une os poderes das coisas de cima e das de baixo."

Tanto a Tradição extremo-oriental (incluindo sua aplicação no Tai-chi) como a Maçonaria, são unânimes através de seu simbolismo construtivo: de um prumo imóvel que pende de um "ponto" imanifestado, desce um eixo que atravessa o centro de todos os movimentos, corporais, anímicos e intelectuais; equilíbrio e hierarquia aos quais o ser se adequa por meio do rito que conduz ao que a primeira denomina a "endogenia do Imortal", cujo pleno desenvolvimento será idêntico à coroação da Obra, ou obtenção da Pedra Filosofal.

Graças ao mesmo eixo, conjuga-se a força da gravidade que assinala o mais baixo, com a via de ascensão que se orienta ao mais alto: a cúspide do Céu ou Pólo celeste (daí que a "forma" do Tai-chi, a sucessão harmônica de seus movimentos segundo as distintas escolas, reproduza sinteticamente, entre outros, os gestos de determinados animais tomados como símbolo dos movimentos anímicos).

Trata-se nisso da forma cósmica: os três mundos –ou quatro se se dividir o plano intermédio, o da alma, em superior e inferior– unidos por um eixo invisível (o centro está virtualmente presente mas pertence, tal como é em si mesmo, a outro plano que suas manifestações), que, partindo de sua Origem, dá lugar a todas as coisas por meio da polarização de dois princípios imanifestados: o Céu e a Terra, constituindo por sua vez o caminho de retorno. "O Tao do Homem segue o Tao da Terra, o Tao da Terra segue o Tao do Céu, o Tao do Céu segue o Tao de Taos".

Para o Tantra, a Shakti de Brahma, sua potência criadora e transformadora, encontra-se simbolicamente, em estado passivo e potencial, no interior do homem, na base de sua coluna vertebral (Mêru-danda, o "eixo ou cetro do monte Meru" em sua correspondência microcósmica), ou eixo central de seu corpo, e a descreve como uma serpente enroscada sobre si mesma, cuja ascensão e desdobramento (Kundalini-Yoga) pelo interior daquela (com o passar do sushumnâ, o raio solar análogo no interior do ser humano ao sutrâtmâ ou "fio do Atmâ" que une o "colar" dos mundos) vai despertando, vivificando e expandindo os diferentes chakras, ou "rodas", que se encontram em distintos níveis da medula espinhal, até chegar, por meio do encéfalo, ao extremo superior da abóbada cranial e abrir-se por sobre ela no chakra Sahasrâra (o "Lótus das Mil pétalas"); abertura paulatina e sucessiva que equivale iniciaticamente à tomada de consciência efetiva dos estados superiores. Em torno do sushumnâ se acham os outros dois nâdîs ("canais") sutis principais, idâ (feminino, lunar, descendente) e pingalâ (masculino, solar, ascendente) que em forma helicoidal se entrecruzam seis vezes ao redor do primeiro, justo ao nível dos chakras correspondentes, e cuja figura global evoca assim imediatamente a do caduceu hermético; estes se relacionam fisiologicamente, de baixo para cima, com as regiões coxígea, sacra, lombar, dorsal-cordial, cervical, encefálica-pineal, e o último com o alto da cabeça e o que se acha por cima dele. A verdadeira localização destes "centros" é, efetivamente, sutil e extracorporal, o que não impede a possibilidade de uma correspondência e interação mútuas e precisas entre ambas as ordens, tal como ocorre, como vimos, entre os planetas e os metais que se lhes correspondem. Deste modo, representa-os simbolicamente para a meditação mediante forma geométricas (yantras) que por sua vez contêm mantras, tudo isso no interior de lótus cujas pétalas são letras do alfabeto sânscrito e que, além disso, são considerados morada das correspondentes deidades e suas shaktis ou potências; a natureza de Kundalinî, sonora e luminosa, difunde-se por meio dos nâdîs principais e secundários junto com o prâna (o espírito vital, análogo ao chi da tradição extremo-oriental) na totalidade do ser individual.

Em nosso caso, é duplamente importante assinalar que esta estrutura da anatomia sutil do ser humano se encontra igualmente presente no esquema da Árvore da Vida cabalística, no qual o sushumnâ será seu canal ou pilar central, e o idâ e o pingalâ, respectivamente, as colunas laterais do rigor e da graça; é natural que isso seja assim pois se trata de um simbolismo fundamental que os veículos sagrados das distintas tradições não podem deixar de testemunhar, ainda com diferenças de detalhe devidas a suas próprias perspectivas. Igualmente, para o esoterismo hebraico, o núcleo de imortalidade, descrito como uma luminosa amêndoa indestrutível (Luz), acha-se situado simbolicamente na base da coluna vertebral.

Se contarmos os pontos assinalados ao longo do Pilar central no diagrama Sefirótico que inclui os caminhos (ver seguinte diagrama assim como o Módulo II, título N.º 28), veremos que é em sete níveis do mesmo, indicados pelas sefiroth do Pilar do Equilíbrio, e os pontos médios entre os que conformam os Pilares da Graça e do Rigor, onde se encontra a analogia com os chakras da tradição hindu. Tratam-se dos vértices e o ponto meio das bases dos triângulos constituídos pelas três tríadas da Árvore mais a sefirah do último plano (ver Módulo I, títulos 11 e 84). Seguindo as correspondências deste modelo com o corpo humano, estabelecidas pela Cabala (ver Módulos I, título 26 e III, 44) vemos que a primeira sefirah, Kether, a coroa, corresponde-se com o chakra Sahasrâra, situado por sobre o alto da cabeça e que constitui, segundo o yoga, a porta ou passagem da manifestação cósmica ao supra-cósmico ou imanifestado. Da união ou equilíbrio entre o Hokhmah e Binah, sabedoria e inteligência (o olho direito e o esquerdo e os respectivos hemisférios cerebrais) nasce, segundo a Cabala, a não-sefirah, Daath, o conhecimento, situado pois entre ambos como o "terceiro olho" ou "olho do Conhecimento", o chakra âjnâ, cuja visão destrói –ou conjuga– os opostos na simultaneidade do "eterno presente". Do mesmo modo, e desde outro ponto de vista, Hokhmah e Binah são para a Cabala o "Sol dos sóis" e a "Lua das luas", e em diversas tradições, além da hindu, o olho direito e o olho esquerdo do Homem universal (o Adam Kadmon da Cabala) são igualmente o Sol e a Lua. Hesed e Gueburah, a graça e o rigor, relacionados com ambos os ombros, unem-se no corpo ao nível da zona cervical, a mesma do chakra vishudda situado na garganta. Tifereth, a beleza, e o chakra anâhata, correspondem ambos ao coração. Netsah e Hod, os quadris e pernas, ao chakra manipûra, situado na zona umbilical. Com respeito à Yesod e Malkhuth, as genitálias e a base ou planta dos pés, dá-se uma variação na posição sefirótica: o primeiro se corresponde, por seu significado, com o chakra mûlâdhâra ("raiz, suporte, fundamento"), cuja localização é na base da coluna vertebral, e o segundo, o "reino", ou morada da Shekinah, com o chakra swâdhishthâna (a "residência própria" da Shakti).

 
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EXERCÍCIO PRÁTICO

 

No yoga tântrico, a cada chakra corresponde um mantram e também uma sílaba ou letra sagrada do alfabeto sânscrito, que pronunciada ritualmente, tal como uma oração, dinamiza e possibilita a abertura do “lótus” ou ponto virtual de energia contida nesse centro, despertando assim a Kundalini. Na prática deste exercício, nós faremos o mesmo com os nomes das sefiroth correspondentes a cada centro, quer dizer, nos remetendo à Cabala. Estes nomes deverão ser pronunciados rítmica e reiteradamente, imaginando-os escritos com luz branca sobre um fundo escuro, e girando ao redor de um ponto. A ordem de começo deve ser de cima para baixo e, logo depois, de baixo para cima.

 
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O OCTÓGONO

 

Sendo o quadrado representação da terra e o círculo uma imagem do céu, o octógono é considerado como uma figura capaz de unir ambos e, portanto, como um símbolo do mundo intermediário, que comunica o inferior com o superior. Por esse motivo que é relacionado com a idéia do mistério da “quadratura do círculo” e da “circulatura do quadrado”, que serviu para expressar o fato da espiritualização do corpo e da “corporificação” do espírito –ou seja, da união indissolúvel do espiritual e do material–, e que por sua vez seria utilizado para representar a “passagem” por esse mundo intermediário. O número oito é freqüentemente relacionado com a morte, e em particular com a morte iniciática. A carta treze do Tarô, com efeito, é colocada na sefirah número oito (Hod) e, na Astrologia, a casa oitava é a casa da morte. Isto nos indica que essa “passagem” terá que implicar na morte aos estados profanos e na ressurreição aos mundos superiores e, nesse sentido, o octógono simboliza uma verdadeira regeneração espiritual que supõe uma transmutação e um novo nascimento.

Com relação com o simbolismo de atravessar as águas, é interessante o fato de que o timão com o qual se conduz a nave tenha forma octogonal. Por outra parte, no percurso através das águas são necessários certos pontos de referência e orientação, e é justamente o símbolo da rosa dos ventos –que se relaciona também com o das “oito portas”– que se utiliza para designar as oito direções do espaço (os quatro pontos cardeais e os outros quatro intermediários) que servirão de guia durante a viagem iniciática. Muitas vezes, as representações da roda aparecem com oito raios, e em certos casos com eles se combinam os quatro elementos (terra, água, ar e fogo) com os quatro estados intermediários da matéria (o seco, o úmido, o frio e o quente).

Na tradição extremo oriental, sempre foi concedida ao octógono uma importância simbólica fundamental, e é a estrutura básica do “Livro das Mutações” ou I Ching. Também entre os chineses são comuns os templos de base quadrada (terra) coroados com uma cúpula semi-esférica (céu), que aparece sustentada por oito pilares ou colunas (mundo intermediário - homem).

No simbolismo construtivo cristão, vemos como os batistérios antigos eram octogonais, como o são também –até agora– as pias batismais. O batismo de água gera uma passagem real a outros estados e um novo nascimento, e nos prepara para o batismo de fogo, que se produzirá quando passarmos pela “sumidade” do templo, pelo ponto central do octógono, que divide sua cúpula, graças a que transitaremos do cósmico ao supracósmico, do humano ao supra-humano ou divino. Insistiremos nestes conceitos quando desenvolvermos outros simbolismos de “passagem” intimamente relacionados com este e complementares entre si.


fig. 42

 
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PICO DE LA MIRANDOLA

 

Giovanni Pico de la Mirandola, Conde de Concórdia (1463-1494) foi, igual que Marsílio Ficino, um dos filósofos herméticos mais importantes dos primeiros anos do Renascimento. Dele se conta que, ao nascer, uma bola de fogo apareceu de súbito no quarto de sua mãe, sendo que tal, mais que fato anedótico, pode ser visto como um presságio da função e do destino espiritual que deveria cumprir. Apesar do breve de sua vida, Pico de la Mirandola deixou uma obra que seria decisiva para a definitiva consolidação do Hermetismo renascentista, embora seus escritos não reflitam hoje com exatidão a transcendência de seu trabalho.

Continuando com o empreendimento de Ficino, Pico de la Mirandola amplia ainda mais a síntese levada a cabo pelo mestre florentino ao incluir em sua obra elementos doutrinais procedentes de diversas filosofias e tradições do Oriente e do Ocidente, e especialmente da Cabala. Este espírito de concórdia ficará plasmado nas “Novecentas Teses” com as quais Pico provará a essencial coincidência que aparece no núcleo interior (esotérico) de todas as tradições, muito acima das diferenças formais e das pretendidas “ortodoxias” dogmáticas e excludentes. Com isso, quem recebeu os apelativos de “Fênix de seu tempo” e “príncipe encantador do Renascimento”, converteu-se para sua época num fiel expoente da Filosofia Perene. As “Novecentas Teses” (algumas das quais lhe conduziram a sérios enfrentamentos com a cúria do vaticano) abrem-se, em modo de prólogo, com uma “Oração sobre a dignidade do homem”, onde com verbo inflamado, Pico expôs a posição central que o homem ocupa no cosmo. Como já se disse, Pico herda o pensamento do cardeal Nicolás de Cusa (1401-1484) que, bebendo nas fontes da metafísica platônica e do hermetismo, desenvolveu a idéia de que os opostos que os limites da razão não podem superar, encontram seu equilíbrio conciliador na Unidade, em que igualmente se fundem todas as doutrinas e religiões.

Trata-se de uma afirmação que corresponde à concepção renascentista do homem considerado como um teurgo capaz de operar nos distintos planos do universo, graças ao conhecimento de um saber totalizador, cuja chave estava na arte e na ciência herméticas. Pode comprovar-se aqui até que ponto distava esta concepção do simples “humanismo”, com que de forma unilateral se pretendeu rotular todo o Renascimento sem considerar as diversas correntes de pensamento tradicional que nele existiram. A “dignidade” do homem lhe vem dada por se saber um colaborador consciente na obra da criação, por cujo eixo pode ascender e descender, pois sua natureza participa por igual do inferior e do superior, “e, se não satisfeito com nenhuma classe de criaturas (terrestres e celestes), recolhe-se no centro de sua unidade, feito um espírito com Deus, introduzido na misteriosa solidão do Pai, que foi colocado sobre todas as coisas, avantaja-las-á a todas. Quem poderia não admirar a este camaleão?”

Mas, sem dúvida, a mais importante empresa levada a cabo por Pico de la Mirandola foi introduzir a Cabala na filosofia oculta do Renascimento. E foram precisamente os judeus chegados na Itália, procedentes da Espanha, que transmitiram a Cabala ao jovem conde. Dentre esses judeus, alguns eram conversos e, por conseguinte, conhecedores tanto da Cabala quanto do cristianismo. Era o caso de Leão Hebreu, Flávio Mitrídates e Paulo de Heredia, que orientam a Pico no sentido de dar uma interpretação cabalística do cristianismo, readaptando, de certo modo, uma tradição à outra. Convencido de que a Cabala confirmava as verdades do cristianismo, Pico dá forma à Cabala cristã, que se complementa perfeitamente com o gnosticismo hermético e neoplatônico herdado de Ficino (ver neste Módulo o título N.º 80). O estudo e conhecimento dos nomes divinos, e a invocação de suas potências mediante a alquimia da oração, constituíam a pedra angular do edifício cabalista cristão, pelo que se deduzia uma teurgia que predispunha o adepto a uma comunicação com os estados angélicos. Seguindo os rabinos cabalistas e os doutores da Igreja como São Jerônimo, para os cabalistas cristãos cada uma das palavras, signos, sílabas e pontos dos livros sagrados (Bíblia, Zohar, Sefer Yetsirah, Bahir, etc.) manifestam a plenitude da mensagem divina na multiplicidade ordenada e hierárquica de seus significados. Modificar ou suprimir algo do contido nesses livros supõe cortar as “raízes das plantas”, e portanto interromper o acesso que conduz à Árvore de Vida, que se eleva no centro do Pardes. Outra coisa bem distinta é fazer uso da combinação e permutação entre as letras e palavras do alfabeto sagrado, pois isso permite descobrir verdades de ordem doutrinal extremamente reveladoras. Todo o sistema de combinação e permutação cabalístico procedia das ciências das letras conhecidas como Guematria, Notarikon e Themurah. Pico assimila o método de combinar as letras (acrescentando seu correspondente valor numérico) ao ars combinandi de Raimundo Lulio. O próprio Pico utilizou a “arte combinatória” para demonstrar, como explica em suas “Conclusões mágico-cabalísticas” (incluídas nas “Novecentas Teses”) que: “Não há ciência que mais certeza nos dê sobre a divindade do Cristo que a magia e a cabala”. Isto, que escandalizou os espíritos fechados do cristianismo, abria, entretanto, possibilidades insuspeitadas para todos aqueles que procuravam uma via de realização baseada na Teurgia e na Magia Natural. Por sua vez, na sétima dessas “Conclusões”, Pico afirma enfaticamente: “Nenhum cabalista hebreu pode negar que o nome de IESU (Jesus), interpretado segundo os princípios cabalísticos, significa “Filho de Deus””. E na décima-quarta, conclui-se dizendo que o nome de Jesus e do Tetragrama IHVH são idênticos, mas com o agregado de uma Shin Letra Shin no meio das quatro letras: IHSVH.  Um discípulo cabalista cristão de Pico, João Reuchlin, acrescentará anos mais tarde em seu livro De Verbo Mirifico, que a consoante “s” (Shin) do nome de Jesus, faz possível a pronúncia, e por conseguinte a audição, do inefável Tetragrama. Esta era uma forma de demonstrar, cabalisticamente, a natureza divina de Cristo, Verbo encarnado do Pai. Assim, o que o exoterismo judaico negou (por ignorância), é afirmado pelo esoterismo. Para Pico e os cabalistas cristãos, Jesus era o Messias, a culminação histórica e supra-histórica da revelação sinaítica dada por Moisés ao povo de Israel. De suas Conclusões reproduzimos as seguintes:

A unidade metafísica é o fundamento da unidade aritmética.
A essência e a existência de qualquer coisa são realmente o mesmo.
O número se encontra precisamente tanto nas coisas abstratas como nas materiais.
A essência de qualquer inteligência existe substancialmente para algo.
Nada há no mundo que careça de vida.
A magia é a parte prática da ciência natural.
O que o mago faz por meio da arte, isso mesmo fez naturalmente a natureza fazendo o homem.
Fazer magia não é outra coisa que fecundar o mundo.
Quem copula à meia noite com Tifereth, obterá que toda sua geração seja próspera.
Por meio da Cabala e concretamente por meio do mistério da parte setentrional, sabe-se por que julgará Deus o século pelo fogo.
 
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O HERMETISMO RENASCENTISTA  I

 

Os parágrafos sobre Marsílio Ficino e Pico de la Mirandola serviram-nos de introdução à filosofia hermética do Renascimento, cuja história, balizada de visões luminosas e acontecimentos mágico-teúrgicos sempre relacionados com a busca do Conhecimento, deixou um rastro indelével na cultura e na alma do Ocidente. Como já apontamos, as sínteses levadas a cabo por Ficino e Pico, junto com a irrupção do Corpus Hermeticum na Europa latina, determinaram o começo de uma nova etapa e desenvolvimento da Arte Régia, enriquecida notavelmente com a contribuição devida à Cabala cristã. Do foco inicial, centrado na Itália, o Hermetismo renascentista conheceu uma ampla difusão pela Alemanha, França e Inglaterra, para acabar implantando-se virtualmente em todo o continente, incluída a, naquela época, Espanha inquisitorial. Da Alemanha, precisamente, era oriundo o já mencionado João Reuchlin (1455-1522), que em suas viagens à Itália contata com os círculos neoplatônicos e cabalistas cristãos, representando o tipo de humanista hermético na linha do Ficino e Pico. Reuchlin estuda e se aprofunda nos mistérios da Cabala e da língua hebraica, desenvolvendo a partir desses conhecimentos aspectos fundamentais da Cabala cristã, assinalados por Pico nas Conclusões e no Heptaplus. A Reuchlin, grande conhecedor da cultura grega (foi chamado “Pitágoras redivivo”), é devido o ter trazido a numerologia pitagórica à teosofia cabalístico-cristã, por outro lado já implícita nesse sistema graças à cosmologia e à metafísica platônicas. Recordemos que Pico havia assinalado que “no número pode encontrar o modo de investigar e compreender tudo o que é possível saber”. Vemos, assim, que em sua primeira obra, De Verbo Mirífico (“O Verbo Maravilhoso”), Reuchlin afirma a analogia entre o Tetragrama e a Tetraktys pitagórica, e entre esta e as dez numerações e nomes divinos da Árvore da Vida, diagrama que, a partir de então, passa a integrar-se definitivamente na cosmovisão hermética, fora do âmbito estritamente judaico. Mas é com sua segunda obra, De Arte Cabalistica, onde Reuchlin expõe a doutrina integral da Cabala cristã, passando a ser o manual de estudo e meditação para todos os adeptos da Ciência Hermética. Em De Arte Cabalistica se diz que a Cabala é uma alquimia que transmuta o mundo das aparências externas em percepções internas, produzindo uma cada vez maior sutilização das faculdades humanas, até sua definitiva transformação em espírito e luz.

Entretanto, ao mesmo tempo que se difundiam as idéias herméticas e cabalísticas, apareceram núcleos de violenta reação contra estas e seus representantes, ataque que procediam sobre tudo de alguns teólogos e da filosofia escolástica em franca fase de degradação e incompreensão para com os princípios tradicionais. Este enfrentamento será constante em todo o Renascimento, vendo-se acrescentado com a aparição da Reforma impulsionada por Lutero e Erasmo. Neste sentido, não será demais assinalar que a Reforma se apoiou, no início, em certos conceitos extraídos da Cabala cristã, ao mesmo tempo que muitos cabalistas cristãos viram com esperanças o movimento reformista, que advogava por uma volta à pureza primitiva dos Evangelhos. Isto foi assim até que, por sua vez, a Reforma protestante decaiu em um estéril puritanismo religioso a serviço dos postulados racionalistas e anti-tradicionais que iluminaram o mundo moderno. Mas também existiram homens de Igreja que se interessaram vivamente pelo hermetismo cabalístico, e inclusive participaram de sua difusão. É o caso do cardeal Egídio de Viterbo (1465-1532), que protegeu e se rodeou de sábios versados em Cabala e hermetismo, tal como fez outro cardeal, Bessarion, na época de Ficino e Pico. Tradutor do Zohar, Egídio de Viterbo deixou uma obra considerável, destacando por seu conteúdo a que leva por título Shekhinah, em que é notório o rastro de Reuchlin. Para o Viterbo, a Shekhinah (a presença real da divindade) é a própria voz da Sabedoria, que se manifesta no coração do justo, mostrando-lhe os celestes mistérios. Ele a compara ao Espírito Santo, por cuja mediação a Lei foi sendo revelada através dos séculos aos profetas e apóstolos. Como se diz no Zohar: “Quando dois ou três se reúnan ao redor da Torah, a Shekhinah estará em meio deles”. Com palavras que evocam a “Tábua de Esmeralda” hermética, Viterbo põe nos lábios da Shekhinah: “Porque este é meu segredo: tanto na terra como no céu... Para que haveria eu criado o céu, os elementos, as pedras, os metais, as ervas, as árvores, os quadrúpedes, os peixes, os pássaros, os homens, senão para que ocorra o mesmo na terra como no céu, e que o mundo sensível imite ao inteligível: e tenho inscrito signos na matéria tal como o imitaram os egípcios”.

Um dos mestres herméticos mais destacados nessa primeira metade do século XVI italiano foi o monge Francesco Giorgi (ou Zorzi) de Veneza (1460-1540), cidade esta que, depois de Florença, passou a ser a capital da filosofia oculta do Renascimento. Bebendo das fontes neoplatônicas, pitagóricas, cabalísticas e na teologia do Dionísio Areopagita, Giorgi escreve Da Harmonia Mundi, talvez a obra que, junto à de Reuchlin e Agrippa, maior influência terá sobre os cabalistas herméticos de toda a Europa. Em Da Harmonia Mundi são constantes as correspondências mágico-teúrgicas entre as hierarquias angélicas (também sefiróticas), zodiacais e planetárias, quer dizer, de todo o conjunto da ordem celeste, que indevidamente se reflete no mundo sublunar ou terrestre.

Para o Giorgi, a harmonia do universo, sua beleza, põe ao homem em disposição de compreender e perceber a perfeição da Mônada ou Unidade Suprema. Todos os planos e níveis da criação, do superior até o elementar, vibram ao mesmo acorde, tangido sobre o diapasão do Arquiteto divino, embora em diferentes tons ou graus de intensidade. O homem capta essa sutil harmonia por meio dos módulos geométricos e numéricos, que acham suas mais formosas e essenciais expressões na arquitetura e na música. Precisamente, em alguns edifícios renascentistas se aplicaram as concepções geométrico-numerológicas recolhidas em Da Harmonia Mundi, e na construção dos quais interveio diretamente Giorgi, como foi o caso do convento de São Francisco da Vinha, em Veneza. Da Harmonia Mundi foi traduzida ao francês pelo poeta hermético Guy Le Fèvre de la Boderie (tradutor também de Pico), a quem descreveu como um tesouro de “belas semelhanças... que se diria que o conjunto está composto de um só bloco de pinturas várias (as diversas fontes doutrinais em que se inspirou), embelezado e enriquecido com arte”. Esta tradução teve grande influência sobre Guilherme Postel e sua escola, que representava o principal foco de expansão da Cabala cristã na França, país este que, dito seja de passagem, desempenharia um importante papel na conservação das idéias tradicionais até nossos dias. Não menos notável foi a influência de Giorgi na Inglaterra de Elisabete I, que na segunda metade do século XVI era na verdade uma “ilha” de tolerância para com a filosofia e a ciência herméticas, tolerância que contrastava com o que ocorria no resto do continente, onde aquelas estavam sendo perseguidas com crescente crueldade pela Inquisição e pela Contra-reforma.

 
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O HERMETISMO RENASCENTISTA  II

 

Tanto quanto à Cabala cristã, a Alquimia também participou do desenvolvimento e difusão do Hermetismo renascentista. Como é natural, ambas as disciplinas eram e são inseparáveis e, de fato, a Grande Obra alquímica facilitava aos cabalistas cristãos o conhecimento da natureza, concebida como uma entidade mágica, mediante a qual se restabelecia a realidade dos contatos com o plano ontológico e metafísico. Quer dizer, que a Alquimia representava, em certo modo, o método “prático” para conseguir a imprescindível transmutação interior que possibilitava a ascensão pelos graus da scala philosophorum.

Talvez quem expôs mais nitidamente as vinculações entre a Cabala cristã, a Alquimia e a Magia natural foi Cornelio Agrippa (1485-1535), sobretudo em seu famoso tratado Filosofia Oculta. Esta obra se divide em três partes, correspondendo-se cada uma delas com os três mundos: o Elemental, o Celeste e o Intelectual, segundo definição dada pelo próprio Agrippa. Tendo sempre presentes as permanentes relações e a unidade entre os três planos cosmogônicos, na primeira parte de seu livro –intitulada “A Magia Natural”– Agrippa detalha cuidadosamente as virtudes e propriedades dos seres e das coisas que habitam na esfera sub-lunar, ou Corpus Mundi. É dada toda classe de indicações e regras para interpretar adequadamente, “como ensinam os Magos e Filósofos”, os reinos telúricos mineral, vegetal e animal à luz de seus protótipos celestes. Na segunda parte –“A Magia Celeste”– descreve-se o Anima Mundi ou Anima Vitae, governada pelas potências das estrelas, dos planetas e do zodíaco. Esta parte está quase toda ela consagrada ao número e à geometria, pois, para a Agrippa como para o Giorgi, a geografia sutil da maravilhosa “máquina celeste” está regida e animada pelas Idéias que manifestam os números e as formas geométricas. Evidencia-se, assim, a influência platônica e pitagórica. E, por último, o terceiro livro, Agrippa o dedica a “A Magia Cerimonial”, que é precisamente a magia invocatória dos anjos e nomes divinos, que conformam o Spiritus Mundi, doador da palavra fecundante e luminosa, que vivifica com seu influxo sobrenatural o cosmo inteiro. Recolhe-se aqui o essencial da Cabala cristã, pois além de oferecer uma exaustiva interpretação das emanações sefiróticas, fazem-se constantes referências ao nome do Jesus, “que tem toda a virtude do nome de quatro letras, expande seu poder e virtude, pois este pai Tetragrama lhe deu poder sobre todas as coisas”. Da mesma forma, alude-se extensamente aos quatro “furores” divinos que o mago invoca em suas operações teúrgicas: o proveniente das Musas, o de Dionisios, o de Apolo e o de Vênus. E como advertindo as dificuldades e paradoxos que apresenta a via hermética para todo aquele que nela entra, Agrippa conclui com estas palavras extraídas do texto bíblico: “Quando procurar o Senhor seu Deus, encontra-lo-á se o busca de todo coração e em toda a tribulação de sua alma”. Infatigável viajante, Agrippa leva a mensagem por sua a Alemanha natal, Itália, França, Inglaterra... Em todos esses países ensina, forma discípulos, cria escolas, entrando em contato com os mais importantes núcleos herméticos e cabalistas. É também perseguido e tachado de enganador e feiticeiro pelos eternos inimigos da doutrina, contra os quais se defende argumentando que o mago “não é sinônimo de enganador, de supersticioso ou de demoníaco, mas sim equivale a sábio, sacerdote ou profeta”, tão elevada era a concepção que tinha de seu ministério e função.

Entre os que foram influídos por seu pensamento, merece destacar-se ao gravador e pintor Alberto Dürer, cujas duas obras, “Melancolia I” e “São Jerônimo em seu estudo”, constituem autênticos tratados hermético-alquímicos. Assinalemos que Dürer foi, além disso, mestre de um agrupamento esotérico de tipo artesanal, tal como seu contemporâneo Leonardo Da Vinci, o que era bastante freqüente em uma época que, como estamos vendo, e apesar de suas contradições e complexidade, reivindicou com força os valores perenes do espírito tradicional do Ocidente. Por outro lado, muitos alquimistas do século XVI deixaram perseverança da cosmovisão hermética em pinturas e gravuras de grande riqueza simbólica e iconográfica, continuando assim uma forma de expressão que se remontava à época alexandrina e, sobretudo, Medieval. Digamos que a utilização das artes plásticas e visuais como meios de transmitir a Grande Obra ainda perduraria entre os adeptos dos séculos XVII e XVIII, a alguns dos quais nos referiremos em posteriores títulos.

 
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ALQUIMIA

 

Continuando com os mestres alquimistas do XVI, devemos mencionar também ao grande médico Paracelso (1493-1541). Como alquimista, sua experiência médica se centrou no estudo e observação da natureza e mais exatamente na forma em que esta urde suas operações ocultas e invisíveis, pois, em definitivo é o espírito, e por meio deste a alma do mundo e do homem, o único que pode sanar os corpos doentes. Tomando como princípio o postulado hermético de que “a magia é natural porque a natureza é mágica”, a medicina do Paracelso se funda nas correspondências e analogias entre o macrocosmo e o microcosmo, que formam um só organismo “no qual as coisas se harmonizam e simpatizam reciprocamente”. Ambos “não são mais que uma constelação, uma influência, um sopro, uma harmonia, um tempo, um metal, um fruto”. Este íntimo laço entre o invisível e o visível, que contribui a edificar a arquitetura do cosmo e da vida, Paracelso o resume da seguinte maneira: “Os astros não influem diretamente sobre os corpos, mas sim sobre a força vital. Por isso os órgãos não são em si mesmos senão representações (símbolos) corporais de energias invisíveis que atuam em todo o organismo. Na realidade, o verdadeiro fígado é uma força que circula em todas as partes do corpo, mas que tem sua sede em um órgão ao qual chamamos assim”. A enfermidade aparece no momento em que se produz uma dissociação no seio dessa unidade macro e microcósmica, pois cada órgão ou parte do corpo está em correspondência com um planeta ou signo zodiacal, os quais, por sua vez, influem em determinados minerais, metais, plantas e animais. Por este motivo, ao se resultar de uma carência um órgão doente, haja compensação administrando –ou anulando a influência se, pelo contrário, tratar-se de um excesso– o conseguinte produto natural com o que dito órgão simpatize. Entretanto, segundo Paracelso, a enfermidade não é unicamente excesso ou carência de algo (que seriam só o efeito), senão que se trata de um “ser” ou de uma entidade do plano anímico intermediário, vinculada, tal como a velhice, ao poder dissolvente e corrosivo do tempo, pelo que a medicina alquímica e tradicional persegue “extrair a ‘quintessência’ das coisas, descobrir seus arcanos, preparando os elixires capazes de devolver ao homem a saúde perdida”; e, o que é mais importante, reintegrá-lo ao estado primordial. A enfermidade seria, pois, não um mal em si mesmo, senão um suporte como outro qualquer para “remontar-se ao plano divino”, conciliando os opostos que surgem de sua ação.

 

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